VOYEURISMO LITERÁRIO

DESNUDA CONTO: Um BLOG para quem tem curiosidade de saber como se dá a arquitetura de um conto, desde a idéia inicial à construção do enredo, cenários e personagens.
Aqui, revelarei despudoradamente minhas experiências durante a criação de um novo trabalho literário, como inpiração, autores e livros que influenciaram na edificação do projeto, curiosidades, sucessos, fracassos, futuros desafios e como meus amigos e familiares, meu trabalho e vida social influenciam no desenvolvimento de meus textos.
Pode entrar. O conto é seu.


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

DESCANSA

Passei o feriado de 07 de Setembro, na cidade litorânea de Canoa Quebrada, aqui, no Ceará. Era madrugada, todos estavam dormindo, enquanto eu tomava algumas doses, tragava alguns cigarros, sozinho, esperando que o sol nascesse. A solidão durou pouco... Este texto serpenteou dentre o lusco-fusco do dia que surgia e me delatou descaradamente...
Duvido, mas creio. Ele não é de verdade. Muito papo, tanto riso, pouca carne, tenta me convencer que ir até a esquina valerá à pena. Mas descer a minha própria rua já é de um risco gigantesco, prefiro não segui-lo, esperarei por meu pai, minha mãe, meu desejo de parecer real, mas eles também terão medo. Ele segurou minha mão e disse agora!, agora quem?, agora quando?, agora hoje?, agora ele parece de verdade?, ou agora ele finge que não mente? Agora nada. Quieto. Eu parado. A interrogação na esquina. Ou a interrogação depois deste jamais que não sinto de fato?

Ele sabe. Eu não sei e finjo saber. Ele ri bobo, a boca torta, quase verdadeira, fala pouco, até a esquina, até a esquina. Até lá, não posso. A esquina contém possibilidades que já me interessaram um dia, mas... Agora não. Agora somente se neste agora eu não fosse quando, que eu fosse antes. Fica aqui, não vai, não me chama, permanece. Eu não sou movimento. Eu sou mudo. Mudo. Ah, é? Você diz que a estátua vai? Ai, ela vai, meu bem, mas não fala! Muda! Muda! Muda! Desista, desnecessário herói. Não me salve da mentira que amo e que leva teu nome. Ate lá não irei. Que sono... Que sono... Que sonho? Quando durmo? Durmo...? Sonho? Ai, sai, não descerei a rua. Aqui. Aqui. Aqui é tranquilo e parece bom mentir-se um simulacro da paz. Não tu. Eu. Deixa-me. Sem ti, permito minha mão que vez ou outra me parece amiga, não a esquina que se dobra feito cotovelo dolorido de espera, curvado sobre a mesa, diante do prato esquecido enquanto a tua fome passeia cansada dentre as pedras desta rua. Minha rua.

De onde ele veio? Ele é tu, percebe? Triste engano... Não teu... Meu. Ele é tu. Não há esquinas em palavras que parecem tão retas. Mas o simples fato de pensar em segui-lo, seguir-te, seria como me perder entre o desejo de ser devorado e o de jantar em casa. E se eu for? Ai, se eu for... Ai, já estive lá... Creia-me, amigo, que me faz mal por não bastar-me como tanto! Creia na farsa insolente que nem eu acredito! As esquinas são piores que o beijo de um sem lábios, que o beijo de um sem língua, porque as esquinas beijam bem. E te lambem, te enchem desta coisa perversa chamada é mais ali, segue, segue, e o tolo segue às cegas. Já fiz, já acreditei nestas mentiras que transformam o mundo em um lugar parecido com o que deveria ser, mas sei que ele é bem menor do que o mundo que leio nos livros de quiromancia, e menos claro, pouco sol. O mundo é do tamanho de meu olhar correndo a rua e vendo até onde fui e até onde decidi não voltar mais. Não vou. Não irei contigo. Mas, enquanto durarem as mentiras, segura minha mão e sustenta este riso de quem sabe que eu quero só mais uma vez descer até lá e esticar meu pescoço nas duas direções... E não ver nada. Olhos mutilados que cessaram o balbucio. Não preciso ver. Sou mudo... Basta-me, não vou. À esquina, não!

E este teu passo que avança na direção do eu sozinho? Lá não, meu bem! Lá existe o risco do eu nunca. Muitas vezes, eu nem sempre. Mas, eu aqui. Estou aqui. Escuta? Não? Ai, perdi! Perdi! Se não sente, é porque já está indo. Mas, para aonde, meu bem? Para aonde? Eu, cheio de orgulho, de gozo por não ir mais, e você seguindo sozinho... Ai, seu patife, que acaracia minha covardia! Aqui é quieto. Escuta-me, terrível amante que não me sabe, que não me percebe, e mesmo assim me arrasta até onde já fui e voltei com medo de todos os teus tis, teus tus, teus vocês, teus meus que não me pertencem. Escuta-me. Escuta-me. Sou mudo! Mudo! Mas todas as coisas que eu não disse, meu bem, estão aqui. Não, seu tolo, não dentro de mim... Nem mesmo na esquina. Todas as coisas que eu não disse estão entre estas palavras que não dizem nada e teus olhos que ignoram saber que tudo que eu não falo é sobre ti.

Não vai. Descansa.

Aqui.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

OS VARAIS

Eram de mundos diferentes. Possuíam elas quereres diversos.

Fora ela educada para o casamento, não para as prendas do lar. Sabia receber convidados soberbos em um jantar pomposo, mas não fazia sequer uma vulgar idéia de como prepará-lo, tinha bom gosto para a disposição dos móveis de mogno da sala, e não sabia lustrá-los com um pano embebido em óleo de peroba, entendia de jardinagem e conhecia todas as espécies possíveis de plantas ornamentais, mesmo assim, se recusava a cravar suas unhas de porcelana na terra que sustentava sua casa de bonecas. Filhos, jamais quis tê-los, pois, seus vasos intocados, suas paredes virgens, seus tapetes imaculados, filhos, não, não, não. Ela gostava de música, vestidos e novelas, pouco tolerava os próprios pensamentos que, vez ou outra, ousavam ser tais quais os masculinos. Ora, e mais uma bobagem destas, mulheres não sabem pensar como homens, então ria de si, um destes risos nervosos, que pouco disfarça qualquer inconfessável desconforto, e voltava sua atenção para as páginas vazias de uma revista de mexericos televisivos, por que os chamam galãs, vá entender, vá entender.

Tinha o marido perfeito, que não exigia dela nada além de sua natural habilidade em apresentar-se impreterivelmente bela e disponível, não para os inconvenientes carnais do matrimônio, mas para a fotografia tão bem emoldurada naquele insípido quadro de perfumes caros e olfatos caducos, impassíveis diante dos néctares e dos cios. Um homem como aquele, imperturbável e colossal diante do pequenino universo de frivolidades e extravagantes caprichos de sua esposa, em ocasião alguma permitiria que ela realizasse um único gesto fatigante e, assim, escurecesse seu rosto cuja luz atravessava diáfana a película de pó a rejuvenescer e transformar em mármore sua pele que, aos poucos, abandonava a mocidade ainda ontem tão presente, eternizada em cada poro. Portanto, Ninoca jamais significara para sua enevoada patroa uma serviçal, uma empregada doméstica. Na verdade, a mulher que coordenava seus desgastantes serviços a encarava como um amável presente de seu marido, uma prenda, um mimo.

Ninoca constrangia-se facilmente se a observavam trabalhar. Como se atravessasse portas e paredes, vigiava seus serviços o olhar daquela mulher de tez descorada e candura oca, socada em um robe vermelho escarlate, como o interior de um caixão. Esfregue um pouco mais, menina, parece não ter vigor nestes braços roliços, nestas pernas sólidas. A distinta senhora estorvava-lhe a cansativa rotina com rogativas supérfluas, o que mais vai me pedir esta madama, que eu me detenha a polir cabeças de alfinete ao invés de capinar o mato que cresce feito o diabo no quintal, reclamava Ninoca, de beiços torcidos, olhos cismados. Mas o pior momento do dia era a lavagem de roupas, quando a mulher que a espreitava costumeiramente e garantia seu soldo no final do mês acendia um de seus pavorosos cigarros acanelados e recostava-se ao umbral da porta que dava para a área de serviço, não me diga que está com medo de se molhar, cabrocha, eu que não posso, que sou tão fraca, é só água, é só água, menina, anda, anda, que ainda temos as cortinas.

E Ninoca balançava os quartos volumosos no mesmo ritmo em que batia as peças mais pesadas contra a lavanderia, a água fria espirrava sobre sua blusa de flanela, a fazer cócegas, eriçar-lhe, que refresco, que delícia. Enquanto a umidade revelava a perfeição de seus peitos melindrosos e atrevidos, o cheiro forte de canela e tabaco parecia entorpecê-la, enquanto a patroa zelosa e atenta vampirizava sua juventude, suas carnes firmes e inquietas, que moleca vulgar, preciso de outro cigarro. O sol a refletir-se naquela pele canela, marrom-tabaco, com o cheiro forte do povo, deste repugnante aroma de gente. A diaba toda molhada e o corpo em brasa, aceso. As bochechas da bunda saltando do short jeans barato, de uma indecência galhofeira e voluptuosa. Na ponta dos pés, ela a pendurar lençóis enquanto o vento os sacudia sobre seu corpo, envolvendo-a, transformando-a em um mistério ainda maior que a libido despertada por seus xucros, e talvez selvagens, encantos.

Acha o que, a sonsa, que vou manchar suas toalhas, que roubarei algum vestido, maldita, maldita mulher, mal-empregado, casada com um homem tão bom, tão bonito, morta dentro das calças, esta vespa inútil, queixava-se Ninoca falando baixinho, a estender roupas nos varais que desenhavam um labirinto avesso a toda a nudez que habita os silêncios contemplativos. Um prendedor dentre os dentes de uma, um cigarro pendurado nos lábios da outra.

O corpo de Ninoca era bonito assim, sob o sol, molhado de água e sabão, transpirando como uma fruta fresca, ansiosa por ser mordida sobre o mato daninho que havia crescido no quintal da casa que ela sonhava sua, que homem bonito, que vespa inútil. A mulher sabia que não era natural ter aqueles pensamentos tipicamente masculinos, mas, se Ninoca havia sido um regalo que recebera das mãos de seu próprio marido, quem poderia censurá-la?
Entra, menina, vai assear-te. E deixe a porta do banheiro entreaberta, que não quero ser roubada, não me leve mais nada, Ninoca. Mais nada.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

IDÉIAS SECANDO AO SOL...


Vieram-me à mente umas ideiazinhas destas que parecem percevejos sobre a cama, que não nos deixam dormir em paz até que levantemos e sacudamos os lençóis. Mas sinto que este novo projeto é tão cheio de nuanças e sutilezas que não poderei concebê-lo assim, sem compreendê-lo em suas diversas camadas. Talvez eu nunca tenha adentrado o universo feminino como pretendo fazer neste trabalho, que já está me enchendo de encantamento e emoção antes mesmo de eu tê-lo transformado em palavras... Duas mulheres e muitas peças de roupa a serem estendidas. É. É um bom começo...

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A VENDEDORA DE ARRANJOS

Tinha o filho da Celma Roleira, uma moça de seus vinte e poucos anos que largara o marido evangélico a fim de fazer ponto em frente ao Parque da Paz, local de descanso eterno de sua finada sogra católica que tanto debulhara rosários para vê-la morta. O menino da Lindinete também era mandado para lá quando sua mãe precisava trabalhar no turno da madrugada na usina de asfalto, aspirando os gases que um dia a matariam antes que ela sofresse o desgosto de ver o filho transformado em um homem pior que o pai. A Fátima deixava sua pequena ali para que assim pudesse limpar do chão as cusparadas do Cabaré Recanto das Garotinhas, sua filha mal a reconhecia, não a chamava mamãe, mas Fati. Também tinham os gêmeos, filhos da Robecilda, que sequer pareciam irmãos tal a falta de semelhança entre as duas crianças rejeitadas pelo homem que duvidava ser pai de qualquer uma delas, imagine das duas. Já o neto do Lobato Bicheiro tinha certas regalias, sendo que a mais importante delas era o fato de comer melhor que as outras crianças e de só beber leite de caixa. Os sobrinhos da Natércia, o filho ilegítimo do Zeca Ramos, as três meninas do Luiz Pintor e da Manu Sacoleira, o enteado do Paulo Babau, o filho adotivo da Maria Leirte, as crias da Nádia, os entojos da Veralda. Todos, vez ou outra – e alguns a semana inteira – eram deixados aos cuidados dela, que ficava com os filhos de suas vizinhas em troca de algumas dezenas de reais por mês.

Às vezes preferia receitar alguns tóxicos inorgânicos como arsênio, antimônio, chumbo, cobre, ferro e fósforo, ou então indicava chá de losna, alecrim, zabumba e de várias outras ervas amargas. Se a moça estivesse grávida de até quinze semanas, ela preferia fazer com uma cureta a raspagem da placenta e das membranas que envolvem o embrião, cercando-se de todos os cuidados para não perfurar a parede do útero das jovens mulheres que a procuravam. E, para aquelas que já estavam pra lá da vigésima semana de gestação, ela possuía um método que consistia em anestesiar um ponto entre o umbigo e a vulva, ultrapassando a parede do abdome, do útero e do âmnio. Com a mesma seringa utilizada para diminuir a sensibilidade, ela aspirava o fluído da bolsa d’água, substituindo-o por uma solução salina que tinha como efeito as contrações que expulsavam o feto. Todas, vez ou outra – e algumas mais de uma vez por ano – procuravam pelos cuidados dela, que abortava os filhos de suas vizinhas em troca de algumas dezenas de reais.

Dona Josefa fora enfermeira do Instituto Dr. José Frota por mais de três décadas dedicadas ao mazelados, amputados e enfermos. Jamais casara ou tivera filhos, jamais dividira suas mãos – que por muito pouco não curavam miraculosamente – com o gozo de um possível marido ou com os egoísmos pueris de um caçula. Eram tantas as feridas, cânceres, viroses. E também era tanta a morte. Não havia espaço para o amor. O amor acabaria por destruir sua inclinação natural, a desviaria de seu intento em cuidar daqueles que ninguém mais no mundo queria sarar as feridas e cicatrizar a alma deteriorada pela dor e pelo abandono. Assim, o álcool acabou por tornar-se uma opção óbvia e indispensável à manutenção de sua renúncia, seu martírio. Mas o vinho parecia sem vigor, os licores não lhe saciavam a sede, então vieram o uísque, a vodca, a cachaça, a garrafa de vinagre, o vidro de perfume. Dona Josefa perdera seus doentes, seu hospital, seu emprego, seus periquitos, seu jardim e sua casa, fora morar em um barraco na Favela Maravilha onde por muito tempo passara por toda sorte de privação, estava partida ao meio, quebrada.

Lindinete foi a primeira que propôs o negócio. Se a senhora não bebesse, eu deixava meu Lalo aqui pra mim poder trabalhar um pouco mais, daí eu teria como lhe dar um agrado, a senhora já foi enfermeira, deve saber de cuidar de criança, mas esta bebida, ai, não, eu não teria coragem. Foi o suficiente para que Dona Josefa largasse o álcool e passasse a cuidar das crianças de algumas mães solteiras de sua rua, mulheres que trabalhavam em bairros afastados como domésticas ou operárias. Não acredito que aquela cabra velha largou a manguaça assim do nada, ainda vai matar o filho de alguma infeliz um dia destes, ainda vai por fogo naquele barraco. Mas a tragédia não veio e o vício estranhamente jamais voltara a agarrar-lhe à força pelo gorgomilo durante o tempo em que cuidara das crianças. Tornara-se então uma espécie de avó zelosa para os filhos daquelas jovens mães que também haviam sido criadas na casa dos outros, no meio da rua, sob a cinzenta proteção dos viadutos. Dona Josefa tinha pressa, precisava insuflar de conforto e amor a vida daquelas crianças que logo estariam jogadas por estas esquinas que mais parecem pústulas venéreas, caídas ao chão, derrubadas pelo fogo da arma empunhada pela mão do menino com o qual um dia soltaram arraias, despidas de dignidade, desprovidas de atenção, esquecidas. Era mister amar aqueles pequenos antes que o mundo os desfigurasse com seu metal implacável. Dona Josefa tinha pressa em acarinhá-los, enchê-los de beijos e de mimos, pois ela sabia que, logo ali na frente, esta traição chamada destino – que só cumpre sua sina na história dos miseráveis – espreitava ansiosa.

Veralda foi a primeira que propôs o negócio. Se a senhora não bebesse, eu ia pedir pra tirar esse menino que eu tô esperando, daí eu não ia precisar sair do meu trabalho e teria como lhe dar um agrado, a senhora já foi enfermeira, deve de saber de tirar criança, mas esta bebida, ai não, eu não teria coragem. Foi o suficiente para que Dona Josefa largasse o álcool e passasse a realizar abortos em algumas mães solteiras da rua, mulheres que trabalhavam em bairros afastados como domésticas ou operárias. Não acredito que aquela cabra velha largou a manguaça assim do nada, ainda vai matar alguma infeliz um dia desses, ainda vai tremer a cureta e encher de sangue aquele barraco. Mas a tragédia não veio e o vício estranhamente jamais voltara a agarrar-lhe à força pelo gorgomilo durante o tempo em que cuidara dos abortos. Tornara-se então uma espécie de avó zelosa para os filhos abortados daquelas jovens mães que também haviam sido criadas na casa dos outros, no meio da rua, sob a cinzenta proteção dos viadutos. Dona Josefa tinha pressa, precisava evitar que viessem ao mundo aquelas crianças que logo estariam jogadas por estas esquinas que mais parecem pústulas venéreas, caídas ao chão, derrubadas pelo fogo da arma empunhada pela mão do menino com o qual um dia soltariam arraias, despidas de dignidade, desprovidas de atenção, esquecidas. Era mister salvar aqueles pequenos antes que o mundo os desfigurasse com seu metal implacável. Dona Josefa tinha pressa em libertá-los, livrá-los das agressões e dos descasos, pois ela sabia que, logo ali na frente, esta traição chamada destino – que só cumpre sua sina na história dos miseráveis – espreitava ansiosa.

Não sei bem quantas crianças vivas ou mortas Dona Josefa acreditava ter salvado das aflições do mundo. E, se não me falha a memória, pouco tempo antes que a morte a levasse embora da Maravilha, ela voltou a beber.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Tá difícil...


Enquanto brincava com o controle-remoto da tevê na noite deste último domingo, me deparei com uma matéria sobre uma mulher que havia matado oito filhos recém-nascidos, enterrado dois deles no jardim de sua antiga propriedade e os outros seis na garagem de sua nova casa, na aldeia de Villers-au-Tertre, França.

A idéia de escrever sobre aborto já era antiga, mas nunca havia sentido que havia chegado o momento certo. Mas esta história me deu um estalo e, de assalto, fui tomado por uma personagem que ganha a vida cuidando dos filhos de suas vizinhas e realizando abortos naquelas que não querem ter filhos... Talvez ela enterre os pequenos corpos em seu próprio jardim, não sei.

Não quero que seja uma história assustadora ou triste. Quero criar uma narrativa crua, seca, dura, todavia, de modo que minha personagem não perca a verossimilhança, que ela seja pacata, humilde, quase dócil, que pareça com tantas mulheres por aí que ganham a vida de maneira pouco convencional e que mesmo assim não deixam de ser humanas, de carne-e-osso... Mas ainda está muito difícil. Vai ser um mergulho daqueles!...




quarta-feira, 28 de julho de 2010

Finalmente... O bendito conto da gravata!

Meus queridos, foi um parto difícil, mas o filho é bem-vindo. Tive que pensar mil coisas acerca de minhas próprias experiências que envolviam desejo e frustração para compor a personagem, muitas vezes me peguei envergonhado por tantos medinhos, por meus pequeninos recalcos, que tanto me atrapalharam... Mas achei minha gravata na rua e não a dei de presente a quem não a merecesse...
NÓ ORDINÁRIO
Sempre fora muito boa em adivinhar coisas óbvias e tratar suas pequenas descobertas como indício incontestável de seus dotes premonitórios. Jamais o leite fervera a ponto de transbordar sobre seu polido fogão, ela acreditava sentir quando as coisas estavam prestes a fugir do controle, então, diminuía a chama e deitava anônima ao lado do estranho que há quinze anos tomara por esposo. Também hoje, ele não irá me tocar, pensava ela e logo em seguida adormecia satisfeita do próprio talento em prever aquilo que, quase por toda sua vida, se mantivera imutável. Meus filhos me odeiam, meus vizinhos riem de mim, meu pai morrerá hoje, dizia para si mesma como se a masturbação psicológica compulsiva que a escravizava na verdade fosse uma voz interior, uma intuição que nunca falhava, ou quase nunca. Papai não morreu hoje. Amanhã, quem sabe.

Cebolas, não. Há cebolas demais, todas cortadas. Esse peixe está excessivamente fresco, chega a ser repugnante seu viço, não me serve. O jenipapo é quase um pecado, acidulado e de aroma forte, de tão doce, nos envenena o esquecimento. Deixarei os jenipapos. Hoje, levarei limões.

Com sua felicidade insossa, ela fazia a feira sem pressa, fingia-se exigente e atenta à putrefação dos orgânicos, enquanto aspirava para dentro de si o cheiro dos feirantes, dos homens corpulentos a carregarem caixotes sobre as costas bubalinas, peitos peludos e suados à mostra, pés descalços e unhas encravadas, brutos, sujos, fornicáveis analfabetos de merda. Sofria ao completar sua lista mental de paliativos culinários, não queria ir embora, sonhava com mais alguns esbarrões, com mais umas tantas esfregadas que transformavam a feira em seu lugar no mundo onde amenas promiscuidades eram permitidas. Minha transgressão de dona-de-casa, meu voluptuoso e solitário puteiro.

Ainda devia passar na costureira e verificar se o arremate do vestido da cerimônia de primeira comunhão de sua filha havia ficado como o da revista de moda. Sua caçula vestida de branco, recebendo o corpo e o sangue de cristo, comungando com Deus, enquanto ela própria trocava jenipapos por limões. Minha filha será uma mulher melhor que eu, fará compras no eBay, não na feira-livre. Mas, antes que chegasse à casa da costureira, uma gravata. Repentinamente, as sensações premonitórias tomaram-lhe de assalto e fomentaram seu espírito manso e domesticado de infinitas razões para aquela peça do vestuário masculino estar ali, entre o peixe fresco e a hóstia consagrada. Olhou para um lado e para o outro com a astúcia de um gatuno e recolheu a gravata do chão, enfiando-a de um único golpe na sacola abarrotada de carnes, frutas e leguminosas. Sou uma puta. Sou uma ladra. Sorriu satisfeita de seus pobres segredos, os quais julgava terríveis.

Não quis macular a brancura virginal do tecido que vestiria sua filha para o tão esperado ritual cristão, suas mãos sujas de alface, frango e, ai, aquela gravata. Vermelha. De seda. Não, não havia sido uma coincidência, só mesmo o destino, ai, o destino. Pegou o embrulho que guardava o vestido e pagou a mulher pelo caprichoso serviço, ninguém faria melhor, igualzinho ao da revista, vai parecer uma santa.

Entrou em seu carro afogueada, jogou a sacola de compras e o pacote da costureira no banco de trás. Antes de dar partida na fálica Frontier, espiou através do espelho retrovisor e admirou-se de sua conquista, Deus e o Diabo sentados lado a lado, feito irmãos. Ai, como fui tola, deveria ter trazido os jenipapos. Nunca sentira tanta vontade de chegar a algum lugar, deitaria nua e suada sobre a cama que o marido parecia incapaz de manter quente e se enroscaria naquela gravata, Eva e a Serpente a debocharem de um Adão combalido, sementes de jenipapo perfumarão minha vulva que cheira a peixe fresco. Pisou fundo e chegou em casa antes de adivinhar aquilo que logo aconteceria, ignorou completamente a imprevisibilidade das coisas e mal percebeu que muito em breve seria traída.

A filha ficou linda dentro do vestido de primeira comunhão, girou pela sala feito uma princesa casta e deixou a mãe tonta e envergonhada. Mentiu que precisava de um copo d’água e fugiu para a cozinha. Primeiro o cheiro-verde, depois as bananas, as beterrabas, as cenouras, tirou tudo cuidadosamente da sacola e, enfim, recolheu o sensual tecido sedoso, vermelho, e levou-o para o quarto como quem orienta os passos de um amante. Ao abrir a porta, para sua infeliz e pérfida surpresa, encontrou o marido ainda ali, pela primeira vez em anos, atrasado para o trabalho. Não acho minhas gravatas, onde estão minhas gravatas, esbravejava o homem a revirar gavetas e armários. Ela então desistiu do libidinoso sonho, não poderia concretizar seu intento em cometer adultério, tudo estava perdido. Ergueu o braço como quem se rende e se suicida incólume. Toma, comprei pra ti. O homem agarrou a peça com frieza e traçou o nó ordinário ao redor de seu pescoço pouco venoso, sequer sentiu o cheiro de feira impregnado no delicado tecido, segurou sua maleta repleta de assuntos mais importantes que ela e abandonou o quarto.

Deitada sobre a cama que poucas vezes lhe dera prazer, lembrou-se dos limões que havia trazido no lugar dos jenipapos. Prendeu as duas mãos em gesto de oração dentre as pernas insatisfeitas, juntas ao sexo frustrado, pensou na filha vestida de branco e desistiu de lutar contra aquilo que sua psique intuía.

Vou chorar.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O NÓ DA GRAVATA

Acho que, desta vez, o bendito conto da gravata vai deixar o mundo das idéias e se incorporar na ponta de meus dedos. É bem provável que ele me saia um tanto quanto diferente da idéia original, mas, mesmo assim, será bem-vindo. Não me queixo de surpresas, pelo contrário, sou um grande fã delas... Mas, hoje não. Hoje quero sair e beber com os amigos, hoje quero falar besteiras e rir da vida alheia sem pudor nenhum. Tive uma semana cheia, eu mereço.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

DECIDI PELO ÓBVIO

Na escolha do título para este novo trabalho, oscilei bastante entre ROUXINOL POTIGUAR e FADA DE ASSU... Todavia, acabei decidindo-me pelo óbvio: CHICO MARGARIDA. O personagem tem uma força, uma inquietude que me assombram, eu não poderia deixar de prestar-lhe tal homenagem.
Em um micro-universo pontuado por canções chorosas, transtorno mental e fadas de James Matthew Barrie, desponta Chico Margarida, materializado pela voz de um pouco confiável narrador.
CHICO MARGARIDA



Este silêncio há de enlouquecer-me antes que a culpa arrebente minhas pontes de safena e faça com que eu finalmente chegue ao outro lado para, enfim, ser julgado. Enquanto vivo, não receberei a merecida sentença por meu crime, pois ele não figura dentre os atos hediondos desaprovados pela lei dos homens. Nesta terra-do-nunca onde obrigados somos a subtrair nossas naturezas sob a camuflagem da normalidade, neste mundo sem encanto e desprovido de beleza, eu matei uma fada. Não há mais garotos perdidos dançando ao redor de meu olhar moribundo que tanto se refestelava ao sabor da miragem sonora que vinha bater-me à porta nas tardes de sexta-feira. Quebradas foram as asas das canções. A música parou.

Ninguém sabe ao certo como ele chegou a Assu. Era natural que estranhássemos que alguém fizesse o caminho oposto ao dos retirantes, saísse do Rio de Janeiro e viesse viver no interior do Rio Grande do Norte, mesmo como mendigo. Provavelmente, de carona em carona, maltratado pela fome e pela ruindade dos homens, Francisco Clístenes chegou à nossa pequena cidade e em pouquíssimo tempo ganhou a alcunha de Chico Margarida, devido a seu comportamento caricato e afeminado, com gestos hiperbólicos que imitavam a elegância das senhoras de tempos imperiais, seu cruzar de pernas que lhe comprimia a macheza dentre as finas coxas, os cílios quase postiços, a voz mole e adocicada. Era um moço que não fazia mal a ninguém, apesar de sua incontestável perturbação mental. Vivia às gargalhadas, absorto em animadas conversas imaginárias com uma platéia masculina devotada a seus encantos, homens belos e atenciosos que povoavam seus extravagantes delírios. Assim, poupava-se de toda a torpeza do mundo no qual, inocentemente, vivia. Chico Margarida, a Fada de Assu.

Ouvia a rádio Princesa do Vale quando aquela voz angelical pela primeira vez bateu-me à porta. Paulatinamente, baixei o volume de meu velho aparelho de som, Ai quem me dera nesta hora estar no lago azul de Ipacaraí, Cantar guaranias e de amor falar em guarani, ainda tentou Ângela Maria antes que eu emudecesse seu cantar por completo. Afinal, Núbia Lafayette parecia ter transcendido a própria morte e abandonado seu sepulcro em Maricá a fim de retornar à terra natal onde, por direito do povo potiguar, ela deveria ter sido sepultada. Ergui-me trêmulo e procurei acalentar a vultuosa emoção que se agitava em meu cansado peito, eu não poderia fenecer antes de constatar com meus próprios olhos – que tão pouco viram de belo nesta vida – que o espectro da musa que embalara os reprimidos amores de minha juventude realmente havia abandonado sua alcova mortuária e se encontrava ali, diante de minha casa, a fazer o trabalho da morte. Ela veio me buscar, eu e minha ridícula presunção.

Ao ver aquele rapaz sujo, maltrapilho, de uma magreza assustadora mas que não chegava a ser feia, de cabelos degrenhados e pés descalços postos sobre o chão de terra batida, quase deixei-me abater pela inevitável decepção. Todavia, Devolvi suas cartas amorosas e as juras mentirosas com que ele me enganou, Devolvi a aliança e também seu retrato para não ver o seu sorriso no silêncio do meu quarto, arrebatou-me. A voz melodiosa e emoldurada por um rosto cuja interpretação exalava os cheiros acres que perfumam as separações, as despedidas, gás a acertar-me em cheio os olhos que, inevitavelmente, partejaram as lágrimas que antecederam meu vigoroso aplauso.

Após acomodá-lo em um banco de madeira que ficava junto ao muro de minha casa, esquentei-lhe o que havia me sobrado de mais um solitário almoço e servi-o com a mesma dedicação que sacerdotes de diversas religiões consagram a seus deuses. Ele levava pequenos bocados de comida à boca e mantinha seu olhar atento firmado em algum ponto invisível suspenso no ar, enquanto a meninada traquina ria e se divertia, entretidos em tentativas inúteis de despertar no bobo da cidade a raiva insana que geralmente habita o temperamento dos ditos loucos. Mas Chico Margarida não os percebia, para seus ouvidos, apenas ovações clamorosas e entusiásticos aplausos.

Eu aguardava pelas tardes de sexta com a mesma ânsia eufórica de um ardoroso fã de vedete a esperar que subam o pano. Quando ele estava de bom humor, eu conseguia fazer com que cantasse quatro ou cinco músicas de Núbia Lafayette antes que eu o servisse não mais de comida requentada, mas feita especialmente para a singular ocasião. Porém, naquele dia, Chico Margarida não estava interessado em meu arroz-de-leite ou na minha galinha caipira. Inquieto, exigiu-me sem meias palavras um litro de aguardente, caso eu quisesse ouvir-lhe cantar naquela tarde. Sei que não se deve dar álcool a pessoas que sofrem de algum transtorno mental, que não é correto excitar-lhes a demência com vícios que possam agravar sua perturbação. Mas, eu não sobreviveria sem o som daquela voz que se empoleirava nos umbrais de meus ouvidos, meu anjo insano, meu rouxinol. Não insistiu muito e, mesmo assim, me rendi ao capricho de sua nova exigência, Tenho o desejo louco de beijar tua boca e nunca mais te ferir, Sinto que meu corpo treme quando você olha bem dentro de mim, cantou. Saciados meus desejos, enrolei um litro de cachaça em uma folha de jonal e entreguei nas mãos de Chico Margarida a arma que naquela mesma noite arrancar-lhe-ia a vida.

Viram-no pela última vez caminhando para o meio do mato na companhia de dois homens. A aguardente não era para ele. A cachaça, na verdade, serviria como moeda de escambo pela pretensa satisfação de suas sensuais necessidades, deixaria que os homens bebessem enquanto ele os bulinaria, sentiria mais uma vez o prazer que por toda a vida lhe disseram sórdido e repugnante, que o enlouquecera. Mataram-no. A golpes de garrafa, a vida de Chico Margarida foi tirada e sua voz, para sempre, silenciada. A culpa foi minha, minha. É bem provável que eu nunca entenda porque Deus pôs aquele rapaz diante de minha porta, jamais mereci suas canções, sou um homem mau, apodrecido pelos próprios fracassos. Matei-te, matei-te, Fada de Assu. Jamais fui digno de tua formosura, jamais ousei amar com a pureza e a coragem que, mesmo escravo de tua alienação mental, amaste, rouxinol.


“mata-me depressa
já não tenho mais motivos pra viver
chega de promessa pois o teu desejo é me ver sofrer
quanto pranto derramei por este amor mas sei que foi em vão
mata-me depressa pois já mataste a minha ilusão
mata-me depressa
arranca do meu peito um pobre coração
que por te amar demais só conheceu a dor da ingratidão
que destino ingrato o meu amar alguém que nunca me amou
mata-me depressa meu sonho de amor já se apagou
mata-me depressa
não fales a ninguém que um dia eu te amei
guarda meu segredo e não digas que a ti eu me enteguei
tento caminhar por essa estrada tão vazia e sem cor
mata-me depressa pra não te ver nos braços de outro amor”


Mata-me Depressa, música de Rossini Pinto, eternizada na voz de Núbia Lafayette.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A MUSA DE ASSU






Estes dias, fui surpreendido por algum vizinho escutando Núbia Lafayette na rua em que moro. A melancolia das letras, o pesar de sua bela voz, começaram a empurrar as pecinhas de lego que habitam minha febril cabeça e começaram a dar forma a um conto que, provavelemente, chamar-se-á Chico Margarida, e que já está próximo do desfecho.

A história se passa na Terra Natal de Núbia, no interior do Rio Grande do Norte, e orbita um personagem indigente, doente mental e homessexual, que ganha suas esmolas seduzindo as pessoas da cidade com belas e tristes canções da cantora potiguar.

Espero que a homenagem fique à altura desta fabulosa intérprete de biscoitos finos da MPB que, se viva estivesse, estaria com 73 anos de melodia e poesia soberbas.

sexta-feira, 2 de julho de 2010


Ai, moçada, a gravata vai ter que deitar-se com naftalinas no fundo da gaveta do mundo das idéias e dar passagem para uma série de outras coisas que estão vindo. DOMINGO chegou-me violentamente, e foi escrito de forma semelhantemente violenta. Quase uma carteira de cigarro consumida sem nenhuma culpa, pois não tenho dúvidas do quanto este texto valeu à pena. Gostei de escrevê-lo. Ele não teve uma razão imediata de ser, talvez seja o resultado vomitado de uma série de coisas tristes e feias que eu já tenha visto ou feito em minha vida. Não gosto de coisas feias... E a literatura é um meio maravilhoso de se extrair beleza da miséria, mesmo quando esta miséria deriva da Lei de Lynch.






DOMINGO



O primeiro chute acertou-lhe um dos calcanhares e fez com que planasse no ar como um destes heróis que povoam o imaginário juvenil. Mas ele sabia, não sou um herói. Seu curto vôo durou apenas uma fração de segundos e teve uma aterrissagem desastrosa, o queixo batendo contra o chão de pedra tosca, a cara a friccionar-se contra cascalho e areia, seguida posteriormente de um corpo desajeitado de Judas em dia de malhação. Deitado, mentiu para si mesmo e sonhou que dormia, mas uma mão acordou-lhe do infantil desejo de não estar ali, agarrou ferozmente seus cabelos ensopados de suor e medo da morte. Uma, duas, três vezes levaram sua cabeça contra o tatame da rua, ai meu deus, ai meu deus.


Estava cercado. Pagaria pelo seu malfeito da pior forma possível, jamais ansiara tanto pela presença da polícia, mas não havia polícia, só aquela fúria massificada a qual os veículos de comunicação costumam chamar justiça com as próprias mãos. Eles eram tantos. Sentia aquela enlouquecida multidão de pés a esmagarem-lhe os órgãos vitais, aos pisões e pontapés, tentou gritar para aliviar as terríveis dores, mas a asfixia e a secura na boca o impediram, deixaram-lhe com a bocarra escancarada como um peixe jogado à margem do rio, esperou pacientemente pelo milagre, que não veio. Pensou em chamar por sua avó, vovó está morta. Silenciou e procurou pensar no dia em que fora à praia com a moça que vendia Avon e que tinha uma biquíni cravejado de conchinhas e búzios, como ela é linda. Minha avó, minha avozinha. Avon, vovó, é Avon.


As mulheres berravam ao redor, aplicavam-lhe cusparadas na cara e ele já não sabia diferenciar a textura da saliva e a do sangue que brotava de mil feridas abertas pelo julgamento popular. Mata esse vagabundo, mata. Alguém trouxe um pau e acertou-lhe em cheio o meio do espinhaço quando tentou rastejar de gatinhas, em uma improvável tentativa de fuga. As vértebras gemeram e se contraíram assustadas, se não existe câimbra óssea, então, meu pai, que dor é essa? A boca, de repente leitosa, fez com que ele corresse a língua por três dentes que não estavam mais lá, sentiu parte da gengiva nua e cuspiu o sangue que havia nublado o céu de sua boca ferida. Talvez se rezasse, mas rezar não sabia. Então fez a única coisa que fora ensinado a fazer em momentos de terrível agonia. Chorou.


Um cão vira-latas, provavelmente tão assustado quanto a vítima do criminoso espetáculo, cravou os caninos em uma das orelhas do homem e pôs-se a puxá-la com vigor, rosnando com ira, copiando o gesto das pessoas que vez ou outra o alimentavam e o enxotavam, enquanto crianças riam, vai arrancar, vai arrancar a orelha dele. A mandíbula do animal, já úmida e encarnada, contraía-se mecanicamente, movida pela algazarra monstruosa que parecia não ter fim, o que para o espancado era verdadeiro, pois em seu entendimento, o violento calvário durou uma eternidade.


Cansaram. Aos poucos, o escarcéu de gente dispersou-se animado, vingados. Alguns ainda sorriam e comentavam, satisfeitos da própria proeza. O cachorro acomodou o rabo dentre as pernas traseiras e caminhou desconfiado, até refestelar-se sob uma carroça carregada de estrume, onde pode lamber suas partes como se estivesse a se presentear com um osso de açougueiro. Quem era ele, o que fez, quis saber um dos espancadores. Não sei, respondeu o outro, tentando limpar o sangue que havia espirrado em sua cara, sem conseguir ao menos disfarçar que tal pergunta não carece de qualquer resposta.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

OS DEMÔNIOS DE ITATIRA 2

Escrito praticamente de um único fôlego, conclui o conto baseado nos demônios que assombram a cidade de Itatira, no Interior do Ceará. Entitulado de O TAMBOR, o texto se passa em um futuro hipotético, narrado dez anos após o início dos fenômenos pela única menina que não sofrera alucinações e convlusões atribuídas a problemas de ordem espiritual.
O TAMBOR possui pretensões que vão além de simplesmente contar uma história. A voz da protagonista-narradora soa como um um instrumento de percussão que tenta se fazer ouvir no meio do frenesi histérico que se formou em sua cidade e que se foca nos sintomas e não nas possíveis verdadeiras causas.
Difícil saber o que vez ou outra traz o diabo à superfície. Espero que vocês recolham as pedras atiradas pelo caminho de O TAMBOR e cheguem não onde eu pretendo que cheguem, mas onde querem ou precisam chegar.


O TAMBOR


“E aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.”
Friedrich Nietzsche


Deus, por favor, me perdoe. Mas não creio em ti.

Há exatamente dez anos, os demônios de Itatira levaram embora minhas amigas, meninas com as quais eu havia pulado fogueiras, ido a quermesses e respondido cadernos de disparate. Levávamos uma vida tranquila e boa, afinal, não se pode esperar mais que isso quando se mora no interior do Nordeste, dentre roceiros e rendeiras. Então os demônios chegaram e elas partiram, possuídas.

Eu fui salva.

Pupilas dilatadas, sem reflexos, a visão atrapalhada, secura na boca e narinas, respiração escassa no peito imerso em pavor e arrependimento por pecados não cometidos, o coração enlouquecido e em desabalado tropel, ensandecidas, febris, minhas amigas. Uma a uma elas deixaram-se seduzir pelo bailado satânico, entregues à sensual histeria que as rodeava como o assobio diabólico de uma revoada de rasga-mortalhas. As convulsões, os transes e os impropérios que desafiavam rezas e novenas, trouxeram movimento e ritmo ao nosso esquecido lugarejo, borrão topográfico entre não sei onde é e lugar nenhum. O diabo ousara debochar da devoção religiosa de meu povo e construíra para si um harém, tomara como concubinas as jovens, quem sabe, virgens do distrito de Cachoeira, estuprando-as à luz do dia, no pátio do Eduardo Barbosa, durante o intervalo das aulas. Súplicas à piedade divina e correntes de orações acabaram por desbancar cálculos algébricos e elementos de morfossintaxe de nosso cronograma escolar, tais linhas do conhecimento humano são inócuas e vulgares diante do medo do desconhecido, da presença do mal, da ausência de Deus.

Em pouco tempo, nossos demônios tornaram-se tão ou mais populares que Padre Cícero Romão Batista e São Francisco das Chagas do Canindé. Mas os romeiros que passaram a nos frequentar não queriam alcançar graças, na verdade, desejavam calorosamente ver o Diabo de perto a fim de não se esquecerem do quanto ele é feio, de que, se ele não se faz de rogado ao atacar meninas que mal deixaram as bonecas, não se apiedaria de arrancar aos gomos a fingida paz do coração de pecadores arrependidos e habituais, que frequentam de modo disciplinado os cultos, não bebem, não fumam e apenas fornicam com a dadivosa intenção de povoar a terra com mais criaturas tementes a Deus, aumentando seu reprimido e ansioso rebanho proibido de ruminar.

Decepcionei meus pais. Nenhum demônio corrompeu minha jovem alma. Nenhum. Não fui arrebatada sequer por um exu, caboclo, ou espírito errante. Em todo o distrito de Cachoeira, no interior de Itatira, eu fui a única adolescente de quinze anos de idade que não caminhou descalça sobre as labaredas do inferno, nem copulou com o anticristo e tampouco gritou palavras assombrosas, tendo deformada a modulação da voz. Os religiosos, repórteres e cientistas não entrevistaram meus familiares, pois eu não era uma médium, eu não havia presenciado nenhuma das inúmeras materializações do fantasma do rapaz moreno, trajado com fardamento escolar, que havia morrido após dar um tiro contra a própria cabeça, ao brincar sozinho de roleta-russa.

E o mais estranho é que, o que me salvou da danação foi justamente a minha descrença em Deus. Todas as minhas amigas seguiam à risca as determinações do catecismo, frequentavam as missas dominicais mesmo quando enfermas, rezavam antes de dormir pedindo perdão pelo mal que não tinham praticado e proteção contra a ameaça que não havia. Apenas quem evita contrair débito com Deus deixa de dever a própria alma ao Diabo. Amém.

Algumas meninas foram levadas por católicos, outras por evangélicos e umas tantas por psicólogos, psiquiatras, parapsicólogos, espíritas, antropólogos e até por catedráticos de etnopsiquiatria. Para vergonha de minha mãe e meu pai, eu fiquei. Diziam que o capeta havia me rejeitado por eu ser quem eu era, uma moça estragada, deflorada ainda criança e com um aborto nas costas.

Minha mãe, três jarras de chá de zabumba e uma fluvial hemorragia. Se meu filho já era ao menos um pedacinho de carne, não tive tempo de vê-lo, a descarga do vaso sanitário foi acionada antes que eu pudesse encarar meu forçado crime. Ainda sangrei por dois dias, durante os quais sofri as piores alucinações e espasmos musculares que alguém possuído possa vir a sentir. Em pequenas quantidades, a zabumba é um santo remédio para cólicas menstruais. Não se oferece chá desta erva a uma mulher em estado interessante.

Meu malfeitor, uma bala no tambor do revólver e um tiro. Ele era um bom cristão, mas não titubeou quando soube que nosso filho havia morrido antes mesmo de vir ao mundo sofrer os abusos deste Deus que absolve pessoas como minha mãe. Liberou o cão da arma pressionada contra as têmporas que outrora eu beijara e morreu antes das ave-marias.

Uma década não foi suficiente para que minhas feridas cicatrizassem, eu ainda sangro. Um dia, minhas amigas voltarão à Itatira. Não retornarão curadas ou exorcizadas, talvez sóbrias. Um dia elas saberão que os demônios que as molestaram não eram assim tão diferentes dos meus.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

OS DEMÔNIOS DE ITATIRA


Ainda ontem, tentei levar pra frente o texto da dona-de-casa e da gravata por ela encontrada na rua. Cheguei, inclusive, a ilustrar um possível trecho inicial: "As cebolas permaneciam intactas no fundo da sacola, virginais. E ela sentia vontade de chorar mesmo antes de feri-las".

Mas a notícia de que os demônios de Itatira (município do interior do Ceará) voltaram a possuir algumas adolescentes, acabou por desviar minha atenção e fez com que eu adiasse por mais um dia o desenvolvimento meu conto de natureza doméstica.

As meninas de Itatira, há quase um mês, vêm sofrendo transes nos quais convulsionam, mudam suas vozes, lutam energicamente contra aqueles que tentam contê-las e, posteriormente, acordam de seu estado de excitação mental sem lembrarem de seus atos ou do que disseram. Psicólogos, parapsicólogos, padres católicos, pastores evangélicos e toda uma leva de possíveis intérpretes do estranho fenômeno já se dirigiram para a cidade a fim de dar um basta nos demônios e ganhar um pouco de notoriedade.

Esta história me fez lembrar de meu conto A Febre e da menina Sierva Maria de Todos los Angeles, personagem de Gabriel Garcia Marquez no livro Do Amor e Outros Demônios. O escritor colombiano inpirou-se para escrever esta obra ao cobrir uma reportagem em Bogotá sobre a remoção de criptas funerárias no convento de Santa Clara, onde deparou-se com um caixão que abrigava uma ossada com cabelos de aproximadamente 22 metros. Imediatamente, Gabriel Garcia associou o fato a uma lenda que sua avó contava acerca de uma marquesinha que havia sido mordida por um cachorro raivoso e morrido. Todavia, anos depois deste acontecimento, Garcia Marquez escreveria uma primorosa ficção onde sua Sierva Maria não morreria após a mordida do cão, mas sim, ficaria supostamente possuída pelo diabo.

As meninas de Itatira também querem me dizer algo. O espetáculo pirotécnico que se formou ao redor do caso não me engana, os demônios destas jovens mulheres não são lá muito diferentes dos meus e dos de Sierva Maria...
É bem provável que eu escreva algo a respeito, mas antes, deixarei vocês com A FEBRE.
***
A FEBRE
Foi em uma destas noites que, de tão sombrias, silenciam o cio dos gatos e o ladrar de cães arruaceiros. Primeiro, um som rouco, disforme, distante, despertou Nelita de seu sono costumeiramente enfadado e envolvido pela cansativa paz que povoa o coração daqueles que teimam em pensar que toda miséria da humanidade é algo irreal. Procurou organizar seus ralos pensamentos a fim de decifrar a natureza daquele som, semelhante ao grunhido de um animal moribundo e suplicante. O estranho barulho parecia vir de todos os cantos da casa e invadir debilmente o pequeno e mofino quarto de Nelita. São gemidos, constatou a jovem aprendiz de órfã, erguendo-se sôfrega e calçando com falsa energia suas gastas sandálias de couro. Pobrezinha, arriscou-se a palavra dentre lábios que pouco se abriam, enquanto Nelita observava a mãe enlouquecida sobre a cama, com movimentos cegos e desesperados, a resmungar palavras ininteligíveis.

A saúde de sua mãe debilitara-se sensivelmente. Sentada ao seu lado, Nelita tentou controlar em vão a luta daqueles braços que pareciam querer agarrar-se a algo muito precioso flutuando na claridade fosca do quarto. Crendo haver traduzido aqueles gestos violentos e angustiados, Nelita enfiou suas duas mãos na gaveta do criado-mudo e buscou dentre dedos trêmulos sentir o terço bento que há tempos havia se tornado o único artifício capaz de apaziguar as crises mais substanciais, depositou cuidadosamente o rosário nas mãos de sua mãe e apertou uma contra a outra, a fim de que a enferma percebesse que o auxílio divino estava a seu alcance e que seu febril coração já poderia se acalmar. Cessado o balbucio, Nelita esticou o braço a fim de secar o leitoso suor impregnado na testa materna, todavia, a convalescente agarrou com brutalidade o pulso da filha, ergueu da cama o corpo mazelento valendo-se de uma velocidade sobrenatural e atirou o rosário longe. Nelita encarou-a temerosa e pensou imediatamente em uma imagem do Diabo que havia visto retratada em um livro de religião da escola, procurou afastar tal pensamento com alguns cânticos nasalizados e concentrar-se em Deus. A mãe parecia ter reunido forças das profundezas abissais de seu corpo debilitado por um mal desconhecido quando, de um único fôlego, de cara atormentada e doentia, disse calorosamente à filha, lábios descascados, língua entorpecida, traz teu pai aqui, não quero morrer sem vê-lo, não sem ele, não posso morrer sem ele, vai, corre, maldita.

Nelita levantou-se de um salto e observou assustada o corpo de sua mãe novamente tombar sobre a cama encharcada de suor. Antes de correr, ainda recolheu do chão o terço e enfiou-o no bolso de sua camisola. Não conseguia parar de pensar no Diabo.

Era um sábado de festa e a cidade estava tomada por uma multidão de infelizes à procura de diversão imediata e barata. A menina, pálida e desnorteada, trajando uma camisola que ostentava um pudor de velhas viúvas, acabou por despertar o riso de umas pessoas e a curiosidade de algumas, por outras passou despercebida. Nelita, naquele momento em que deveria estar sendo acometida por uma canibalesca sensação de constrangimento devido aos olhares de desaprovação e comentários jocosos, acabou por sentir-se a mais elevada das criaturas que Deus já pôs sobre a Terra. Afinal, era sempre assim, apenas através do que julgava sacrifício, alcançava a idéia que fazia de prazer. Ser boa e dadivosa era sua aspiração mais obsessiva, amar aqueles que a ignoravam e aceitar sem ressalvas sofrimento, desprezo e insatisfação era o seu estranho modo de comungar com o mundo seu coração e espírito que ela própria julgava sem máculas. A doença da mãe apenas servira para intensificar sua tolerância ao padecimento diário, a dor era o único alimento capaz de saciar seu apetite frugal e a compaixão alheia por sua renúncia às delícias que apenas aquilo que é frívolo nos proporciona a transformavam na virgem, na santa, na mártir que ela cultuava em segredo.

Após muito perambular em busca do pai, acabou vislumbrando-o sentado a uma mesa de bar, acompanhado de uma jovem mulher. Timidamente, Nelita aproximou-se e, após alguns cuidadosos passos, petrificou no meio do salão, onde alguns casais embriagados tentavam dançar um desafinado forró. As pessoas a ignoravam como se ela não passasse de um fragmento frio e invisível de inexistência, a bondade em demasia a transmudara em um ser que não ocupava espaço algum, e isto, para Nelita, era o retrato fiel de sua própria beleza.

A boca de seu pai descia dos lábios da mulher até o roliço pescoço, enquanto suas mãos de mestre-de-obras corriam os seios flácidos e as pervertidas ancas. Nelita permaneceu estática e com seu olhar bovino posto sobre o adultério do pai como uma mão que absolve. Se ousasse odiá-lo, iria corromper a virtude arquitetada e cultivada por toda a sua vida, não poderia se permitir perder tanto. Procurou visualizar mentalmente a imagem do Diabo a fim de canalizar sua ira para a única criatura cujo ódio a ela direcionado é perdoável e isento de desnecessários remorsos. Porém, a figura da hedionda entidade abandonou-lhe a memória como se ela jamais a tivesse visto, enfiou a mão no bolso e apertou com força um punhado de mistérios do rosário, odeio o Diabo.

Despertado do êxtase voluptuoso por um grosseiro safanão de sua companheira de ébrias madrugadas, o pai de Nelita pôde vislumbrar a filha que o fitava com olhos de perdão eterno. Tomado por uma carranca de aspecto grotesco, o homem entornou de um gole seco o copo cheio de cachaça e sentiu pela filha um repúdio ainda maior que o que passara a sentir pela esposa que não saciava mais seus apetites. Sem demonstrar o menor acanhamento, o pai de Nelita arrastou para junto de si o corpo da amante e sapecou-lhe na boca um beijo carregado um de libidinoso desejo que se manifestaria por qualquer mulher que não fosse a morta-viva prostrada sobre a cama de seu quarto ou o fantasma de camisola que ousara absolvê-lo pelos pecados que ele não se envergonhava da prática rotineira.

Nelita retornou para casa sentindo explodir dentro de si a sublimação de seus sentimentos. Conseguira quase sem esforço algum manter paixões vis adormecidas dentro de seu peito, fora mais forte que qualquer outro santo do qual ouvira falar, Deus prefere o meu martírio. Havia um espelho metafórico diante de si onde ela enxergava a imagem de Cristo crucificado, resguardando no rosto uma expressão de deleite etéreo. Sabia que o Diabo, sim, poderia ser odiado. Apenas o Diabo.

Ao entrar no quarto de sua mãe, Nelita encontrou-a inerte sobre os lençóis ensopados pelos sucos da tortuosa moléstia. Caso não se percebesse o movimento de um leve respirar em seu abdômen, qualquer pessoa certamente a julgaria morta. Nelita sentou-se ao lado do corpo esquálido e sua mãe então abriu os olhos delirantes e estampou um doloroso sorriso em sua face cadavérica, Lázaro, meu marido Lázaro. E, novamente, tomada por uma energia incompreensível, a mulher abandonou seu estado de torpor e envolveu a filha em um abraço apaixonado, aplicando-lhe um beijo adolescente na boca que, em sua torpe excitação mental, ela julgara ser a do esposo. Jamais um beijo lésbico e incestuoso fora tão puro, Judas havia traído o maior de todos os seus amores com um beijo, mas Nelita, Nelita estava salvando sua mãe ao valer-se do mesmo bíblico artifício. Julgara-se naquele instante um esposo melhor para a mãe, pois em seus lábios só havia ternura e em sua alma a mais profunda entrega. Satisfeita, crédula de que realizara a derradeira vontade de sua vida, a mulher desprendeu os débeis lábios dos da filha e aproximou-os do atento ouvido de Nelita, por ti, Lázaro, eu não me permitirei morrer.

Difícil entender o que se passou no dia seguinte, esta linha tênue que separa os milagres das maldições. A mãe de Nelita, misteriosamente, acordara refeita de seu estranho mal, sua sanidade e vigor físico haviam retornado como se, por determinação divina, ela houvesse despertado de um pesadelo que durara anos. Todavia, a morte inexplicável e repentina da filha ainda tão moça não permitiu que ela ousasse sentir-se feliz naquele primeiro instante em seu miraculoso despertar. Nelita morrera durante o sono, talvez não houvesse sofrido com a chegada precoce de seu passamento, quem sabe ainda sonhava. Sua mãe, inconformada, velou seu corpo por horas e horas, enquanto o marido tentava consolá-la, posto a seu lado como um colosso, tocando-lhe o ombro com a segurança que a mulher tanto prezara durante todos aqueles anos de matrimônio, não lembrava ela do abandono, desconhecia completamente o adultério.

Com algum esforço, a mãe de Nelita conseguiu retirar o rosário das mãos rijas de sua amada menina e abraçou-se desolada ao marido, àquele homem perfeito, chorando a morte da filha que só vivera por ela.

Foi a febre, disse o homem a olhar desconfiado o corpo da filha acomodado em um pobre ataúde, falam por aí que tem uma febre que mata a gente assim, dormindo, deve ser coisa do Diabo.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Uma Gravata


E se uma mulher de vida simples e rotineira, que não fosse feliz nem triste, encontrasse uma gravata no chão da rua, entre a feira-livre e a casa da costureira que estava a preparar o vestido de primeira comunhão de sua filha caçula? E se esta gravata se tornasse seu maior e mais prazeroso segredo? E se ela a escondesse dentre suas calcinhas como quem oculta as cartas de um amante? Que transformações poderiam acontecer em sua vida e na de sua família? Afinal, o verdadeiro poder está no amuleto em si ou na importância que damos a ele?

Já penso em escrever esta história há alguns dias, não sei bem de onde ela veio, mas ela está aqui ao meu lado, como um fantasma de olhos tristes, pedindo pra encarnar no mundo dos vivos. Também não faço a menor idéia de como seja a cara das possíveis personagens, suas identidades e personalidades... Confesso que não sei sequer a cor desta maldita gravata e que título dar ao texto!

Talvez o fato de eu ter falado aos meus amigos mais próximos - que são leitores e boêmios bem exigentes - sobre as pretensões de escrever este texto tenha acabado por me deixar ansioso, o que pode ser o motivo de eu ainda não ter escrito nenhuma linha. Tentei desenvolver o conto no domingo mas o oba-oba promovido pela vitória brasileira sobre a Costa do Marfim transformou minha rua em um inferno de rojões e vuvuzelas. Odeio futebol. Talvez hoje - se eu conseguir chegar em casa, já que os ônibus de Fortaleza ainda estão de greve - eu tenha mais sorte.