VOYEURISMO LITERÁRIO

DESNUDA CONTO: Um BLOG para quem tem curiosidade de saber como se dá a arquitetura de um conto, desde a idéia inicial à construção do enredo, cenários e personagens.
Aqui, revelarei despudoradamente minhas experiências durante a criação de um novo trabalho literário, como inpiração, autores e livros que influenciaram na edificação do projeto, curiosidades, sucessos, fracassos, futuros desafios e como meus amigos e familiares, meu trabalho e vida social influenciam no desenvolvimento de meus textos.
Pode entrar. O conto é seu.


segunda-feira, 28 de junho de 2010

OS DEMÔNIOS DE ITATIRA 2

Escrito praticamente de um único fôlego, conclui o conto baseado nos demônios que assombram a cidade de Itatira, no Interior do Ceará. Entitulado de O TAMBOR, o texto se passa em um futuro hipotético, narrado dez anos após o início dos fenômenos pela única menina que não sofrera alucinações e convlusões atribuídas a problemas de ordem espiritual.
O TAMBOR possui pretensões que vão além de simplesmente contar uma história. A voz da protagonista-narradora soa como um um instrumento de percussão que tenta se fazer ouvir no meio do frenesi histérico que se formou em sua cidade e que se foca nos sintomas e não nas possíveis verdadeiras causas.
Difícil saber o que vez ou outra traz o diabo à superfície. Espero que vocês recolham as pedras atiradas pelo caminho de O TAMBOR e cheguem não onde eu pretendo que cheguem, mas onde querem ou precisam chegar.


O TAMBOR


“E aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.”
Friedrich Nietzsche


Deus, por favor, me perdoe. Mas não creio em ti.

Há exatamente dez anos, os demônios de Itatira levaram embora minhas amigas, meninas com as quais eu havia pulado fogueiras, ido a quermesses e respondido cadernos de disparate. Levávamos uma vida tranquila e boa, afinal, não se pode esperar mais que isso quando se mora no interior do Nordeste, dentre roceiros e rendeiras. Então os demônios chegaram e elas partiram, possuídas.

Eu fui salva.

Pupilas dilatadas, sem reflexos, a visão atrapalhada, secura na boca e narinas, respiração escassa no peito imerso em pavor e arrependimento por pecados não cometidos, o coração enlouquecido e em desabalado tropel, ensandecidas, febris, minhas amigas. Uma a uma elas deixaram-se seduzir pelo bailado satânico, entregues à sensual histeria que as rodeava como o assobio diabólico de uma revoada de rasga-mortalhas. As convulsões, os transes e os impropérios que desafiavam rezas e novenas, trouxeram movimento e ritmo ao nosso esquecido lugarejo, borrão topográfico entre não sei onde é e lugar nenhum. O diabo ousara debochar da devoção religiosa de meu povo e construíra para si um harém, tomara como concubinas as jovens, quem sabe, virgens do distrito de Cachoeira, estuprando-as à luz do dia, no pátio do Eduardo Barbosa, durante o intervalo das aulas. Súplicas à piedade divina e correntes de orações acabaram por desbancar cálculos algébricos e elementos de morfossintaxe de nosso cronograma escolar, tais linhas do conhecimento humano são inócuas e vulgares diante do medo do desconhecido, da presença do mal, da ausência de Deus.

Em pouco tempo, nossos demônios tornaram-se tão ou mais populares que Padre Cícero Romão Batista e São Francisco das Chagas do Canindé. Mas os romeiros que passaram a nos frequentar não queriam alcançar graças, na verdade, desejavam calorosamente ver o Diabo de perto a fim de não se esquecerem do quanto ele é feio, de que, se ele não se faz de rogado ao atacar meninas que mal deixaram as bonecas, não se apiedaria de arrancar aos gomos a fingida paz do coração de pecadores arrependidos e habituais, que frequentam de modo disciplinado os cultos, não bebem, não fumam e apenas fornicam com a dadivosa intenção de povoar a terra com mais criaturas tementes a Deus, aumentando seu reprimido e ansioso rebanho proibido de ruminar.

Decepcionei meus pais. Nenhum demônio corrompeu minha jovem alma. Nenhum. Não fui arrebatada sequer por um exu, caboclo, ou espírito errante. Em todo o distrito de Cachoeira, no interior de Itatira, eu fui a única adolescente de quinze anos de idade que não caminhou descalça sobre as labaredas do inferno, nem copulou com o anticristo e tampouco gritou palavras assombrosas, tendo deformada a modulação da voz. Os religiosos, repórteres e cientistas não entrevistaram meus familiares, pois eu não era uma médium, eu não havia presenciado nenhuma das inúmeras materializações do fantasma do rapaz moreno, trajado com fardamento escolar, que havia morrido após dar um tiro contra a própria cabeça, ao brincar sozinho de roleta-russa.

E o mais estranho é que, o que me salvou da danação foi justamente a minha descrença em Deus. Todas as minhas amigas seguiam à risca as determinações do catecismo, frequentavam as missas dominicais mesmo quando enfermas, rezavam antes de dormir pedindo perdão pelo mal que não tinham praticado e proteção contra a ameaça que não havia. Apenas quem evita contrair débito com Deus deixa de dever a própria alma ao Diabo. Amém.

Algumas meninas foram levadas por católicos, outras por evangélicos e umas tantas por psicólogos, psiquiatras, parapsicólogos, espíritas, antropólogos e até por catedráticos de etnopsiquiatria. Para vergonha de minha mãe e meu pai, eu fiquei. Diziam que o capeta havia me rejeitado por eu ser quem eu era, uma moça estragada, deflorada ainda criança e com um aborto nas costas.

Minha mãe, três jarras de chá de zabumba e uma fluvial hemorragia. Se meu filho já era ao menos um pedacinho de carne, não tive tempo de vê-lo, a descarga do vaso sanitário foi acionada antes que eu pudesse encarar meu forçado crime. Ainda sangrei por dois dias, durante os quais sofri as piores alucinações e espasmos musculares que alguém possuído possa vir a sentir. Em pequenas quantidades, a zabumba é um santo remédio para cólicas menstruais. Não se oferece chá desta erva a uma mulher em estado interessante.

Meu malfeitor, uma bala no tambor do revólver e um tiro. Ele era um bom cristão, mas não titubeou quando soube que nosso filho havia morrido antes mesmo de vir ao mundo sofrer os abusos deste Deus que absolve pessoas como minha mãe. Liberou o cão da arma pressionada contra as têmporas que outrora eu beijara e morreu antes das ave-marias.

Uma década não foi suficiente para que minhas feridas cicatrizassem, eu ainda sangro. Um dia, minhas amigas voltarão à Itatira. Não retornarão curadas ou exorcizadas, talvez sóbrias. Um dia elas saberão que os demônios que as molestaram não eram assim tão diferentes dos meus.

Um comentário:

  1. Falei pra você que eu não havia gostado deste conto... Você disse que era por questões pessoais, por minhas posições religiosas. Mas, que nada! Não, sei lá, não achei você nele, não encontrei o estilo que gosto. Não sou nenhuma macaca de igreja, nem mesmo vou à missa. Só acho que não me tocou, que não mexeu comigo, como boa parte do que você escreve... TE AMO!

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