VOYEURISMO LITERÁRIO

DESNUDA CONTO: Um BLOG para quem tem curiosidade de saber como se dá a arquitetura de um conto, desde a idéia inicial à construção do enredo, cenários e personagens.
Aqui, revelarei despudoradamente minhas experiências durante a criação de um novo trabalho literário, como inpiração, autores e livros que influenciaram na edificação do projeto, curiosidades, sucessos, fracassos, futuros desafios e como meus amigos e familiares, meu trabalho e vida social influenciam no desenvolvimento de meus textos.
Pode entrar. O conto é seu.


quarta-feira, 28 de julho de 2010

Finalmente... O bendito conto da gravata!

Meus queridos, foi um parto difícil, mas o filho é bem-vindo. Tive que pensar mil coisas acerca de minhas próprias experiências que envolviam desejo e frustração para compor a personagem, muitas vezes me peguei envergonhado por tantos medinhos, por meus pequeninos recalcos, que tanto me atrapalharam... Mas achei minha gravata na rua e não a dei de presente a quem não a merecesse...
NÓ ORDINÁRIO
Sempre fora muito boa em adivinhar coisas óbvias e tratar suas pequenas descobertas como indício incontestável de seus dotes premonitórios. Jamais o leite fervera a ponto de transbordar sobre seu polido fogão, ela acreditava sentir quando as coisas estavam prestes a fugir do controle, então, diminuía a chama e deitava anônima ao lado do estranho que há quinze anos tomara por esposo. Também hoje, ele não irá me tocar, pensava ela e logo em seguida adormecia satisfeita do próprio talento em prever aquilo que, quase por toda sua vida, se mantivera imutável. Meus filhos me odeiam, meus vizinhos riem de mim, meu pai morrerá hoje, dizia para si mesma como se a masturbação psicológica compulsiva que a escravizava na verdade fosse uma voz interior, uma intuição que nunca falhava, ou quase nunca. Papai não morreu hoje. Amanhã, quem sabe.

Cebolas, não. Há cebolas demais, todas cortadas. Esse peixe está excessivamente fresco, chega a ser repugnante seu viço, não me serve. O jenipapo é quase um pecado, acidulado e de aroma forte, de tão doce, nos envenena o esquecimento. Deixarei os jenipapos. Hoje, levarei limões.

Com sua felicidade insossa, ela fazia a feira sem pressa, fingia-se exigente e atenta à putrefação dos orgânicos, enquanto aspirava para dentro de si o cheiro dos feirantes, dos homens corpulentos a carregarem caixotes sobre as costas bubalinas, peitos peludos e suados à mostra, pés descalços e unhas encravadas, brutos, sujos, fornicáveis analfabetos de merda. Sofria ao completar sua lista mental de paliativos culinários, não queria ir embora, sonhava com mais alguns esbarrões, com mais umas tantas esfregadas que transformavam a feira em seu lugar no mundo onde amenas promiscuidades eram permitidas. Minha transgressão de dona-de-casa, meu voluptuoso e solitário puteiro.

Ainda devia passar na costureira e verificar se o arremate do vestido da cerimônia de primeira comunhão de sua filha havia ficado como o da revista de moda. Sua caçula vestida de branco, recebendo o corpo e o sangue de cristo, comungando com Deus, enquanto ela própria trocava jenipapos por limões. Minha filha será uma mulher melhor que eu, fará compras no eBay, não na feira-livre. Mas, antes que chegasse à casa da costureira, uma gravata. Repentinamente, as sensações premonitórias tomaram-lhe de assalto e fomentaram seu espírito manso e domesticado de infinitas razões para aquela peça do vestuário masculino estar ali, entre o peixe fresco e a hóstia consagrada. Olhou para um lado e para o outro com a astúcia de um gatuno e recolheu a gravata do chão, enfiando-a de um único golpe na sacola abarrotada de carnes, frutas e leguminosas. Sou uma puta. Sou uma ladra. Sorriu satisfeita de seus pobres segredos, os quais julgava terríveis.

Não quis macular a brancura virginal do tecido que vestiria sua filha para o tão esperado ritual cristão, suas mãos sujas de alface, frango e, ai, aquela gravata. Vermelha. De seda. Não, não havia sido uma coincidência, só mesmo o destino, ai, o destino. Pegou o embrulho que guardava o vestido e pagou a mulher pelo caprichoso serviço, ninguém faria melhor, igualzinho ao da revista, vai parecer uma santa.

Entrou em seu carro afogueada, jogou a sacola de compras e o pacote da costureira no banco de trás. Antes de dar partida na fálica Frontier, espiou através do espelho retrovisor e admirou-se de sua conquista, Deus e o Diabo sentados lado a lado, feito irmãos. Ai, como fui tola, deveria ter trazido os jenipapos. Nunca sentira tanta vontade de chegar a algum lugar, deitaria nua e suada sobre a cama que o marido parecia incapaz de manter quente e se enroscaria naquela gravata, Eva e a Serpente a debocharem de um Adão combalido, sementes de jenipapo perfumarão minha vulva que cheira a peixe fresco. Pisou fundo e chegou em casa antes de adivinhar aquilo que logo aconteceria, ignorou completamente a imprevisibilidade das coisas e mal percebeu que muito em breve seria traída.

A filha ficou linda dentro do vestido de primeira comunhão, girou pela sala feito uma princesa casta e deixou a mãe tonta e envergonhada. Mentiu que precisava de um copo d’água e fugiu para a cozinha. Primeiro o cheiro-verde, depois as bananas, as beterrabas, as cenouras, tirou tudo cuidadosamente da sacola e, enfim, recolheu o sensual tecido sedoso, vermelho, e levou-o para o quarto como quem orienta os passos de um amante. Ao abrir a porta, para sua infeliz e pérfida surpresa, encontrou o marido ainda ali, pela primeira vez em anos, atrasado para o trabalho. Não acho minhas gravatas, onde estão minhas gravatas, esbravejava o homem a revirar gavetas e armários. Ela então desistiu do libidinoso sonho, não poderia concretizar seu intento em cometer adultério, tudo estava perdido. Ergueu o braço como quem se rende e se suicida incólume. Toma, comprei pra ti. O homem agarrou a peça com frieza e traçou o nó ordinário ao redor de seu pescoço pouco venoso, sequer sentiu o cheiro de feira impregnado no delicado tecido, segurou sua maleta repleta de assuntos mais importantes que ela e abandonou o quarto.

Deitada sobre a cama que poucas vezes lhe dera prazer, lembrou-se dos limões que havia trazido no lugar dos jenipapos. Prendeu as duas mãos em gesto de oração dentre as pernas insatisfeitas, juntas ao sexo frustrado, pensou na filha vestida de branco e desistiu de lutar contra aquilo que sua psique intuía.

Vou chorar.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O NÓ DA GRAVATA

Acho que, desta vez, o bendito conto da gravata vai deixar o mundo das idéias e se incorporar na ponta de meus dedos. É bem provável que ele me saia um tanto quanto diferente da idéia original, mas, mesmo assim, será bem-vindo. Não me queixo de surpresas, pelo contrário, sou um grande fã delas... Mas, hoje não. Hoje quero sair e beber com os amigos, hoje quero falar besteiras e rir da vida alheia sem pudor nenhum. Tive uma semana cheia, eu mereço.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

DECIDI PELO ÓBVIO

Na escolha do título para este novo trabalho, oscilei bastante entre ROUXINOL POTIGUAR e FADA DE ASSU... Todavia, acabei decidindo-me pelo óbvio: CHICO MARGARIDA. O personagem tem uma força, uma inquietude que me assombram, eu não poderia deixar de prestar-lhe tal homenagem.
Em um micro-universo pontuado por canções chorosas, transtorno mental e fadas de James Matthew Barrie, desponta Chico Margarida, materializado pela voz de um pouco confiável narrador.
CHICO MARGARIDA



Este silêncio há de enlouquecer-me antes que a culpa arrebente minhas pontes de safena e faça com que eu finalmente chegue ao outro lado para, enfim, ser julgado. Enquanto vivo, não receberei a merecida sentença por meu crime, pois ele não figura dentre os atos hediondos desaprovados pela lei dos homens. Nesta terra-do-nunca onde obrigados somos a subtrair nossas naturezas sob a camuflagem da normalidade, neste mundo sem encanto e desprovido de beleza, eu matei uma fada. Não há mais garotos perdidos dançando ao redor de meu olhar moribundo que tanto se refestelava ao sabor da miragem sonora que vinha bater-me à porta nas tardes de sexta-feira. Quebradas foram as asas das canções. A música parou.

Ninguém sabe ao certo como ele chegou a Assu. Era natural que estranhássemos que alguém fizesse o caminho oposto ao dos retirantes, saísse do Rio de Janeiro e viesse viver no interior do Rio Grande do Norte, mesmo como mendigo. Provavelmente, de carona em carona, maltratado pela fome e pela ruindade dos homens, Francisco Clístenes chegou à nossa pequena cidade e em pouquíssimo tempo ganhou a alcunha de Chico Margarida, devido a seu comportamento caricato e afeminado, com gestos hiperbólicos que imitavam a elegância das senhoras de tempos imperiais, seu cruzar de pernas que lhe comprimia a macheza dentre as finas coxas, os cílios quase postiços, a voz mole e adocicada. Era um moço que não fazia mal a ninguém, apesar de sua incontestável perturbação mental. Vivia às gargalhadas, absorto em animadas conversas imaginárias com uma platéia masculina devotada a seus encantos, homens belos e atenciosos que povoavam seus extravagantes delírios. Assim, poupava-se de toda a torpeza do mundo no qual, inocentemente, vivia. Chico Margarida, a Fada de Assu.

Ouvia a rádio Princesa do Vale quando aquela voz angelical pela primeira vez bateu-me à porta. Paulatinamente, baixei o volume de meu velho aparelho de som, Ai quem me dera nesta hora estar no lago azul de Ipacaraí, Cantar guaranias e de amor falar em guarani, ainda tentou Ângela Maria antes que eu emudecesse seu cantar por completo. Afinal, Núbia Lafayette parecia ter transcendido a própria morte e abandonado seu sepulcro em Maricá a fim de retornar à terra natal onde, por direito do povo potiguar, ela deveria ter sido sepultada. Ergui-me trêmulo e procurei acalentar a vultuosa emoção que se agitava em meu cansado peito, eu não poderia fenecer antes de constatar com meus próprios olhos – que tão pouco viram de belo nesta vida – que o espectro da musa que embalara os reprimidos amores de minha juventude realmente havia abandonado sua alcova mortuária e se encontrava ali, diante de minha casa, a fazer o trabalho da morte. Ela veio me buscar, eu e minha ridícula presunção.

Ao ver aquele rapaz sujo, maltrapilho, de uma magreza assustadora mas que não chegava a ser feia, de cabelos degrenhados e pés descalços postos sobre o chão de terra batida, quase deixei-me abater pela inevitável decepção. Todavia, Devolvi suas cartas amorosas e as juras mentirosas com que ele me enganou, Devolvi a aliança e também seu retrato para não ver o seu sorriso no silêncio do meu quarto, arrebatou-me. A voz melodiosa e emoldurada por um rosto cuja interpretação exalava os cheiros acres que perfumam as separações, as despedidas, gás a acertar-me em cheio os olhos que, inevitavelmente, partejaram as lágrimas que antecederam meu vigoroso aplauso.

Após acomodá-lo em um banco de madeira que ficava junto ao muro de minha casa, esquentei-lhe o que havia me sobrado de mais um solitário almoço e servi-o com a mesma dedicação que sacerdotes de diversas religiões consagram a seus deuses. Ele levava pequenos bocados de comida à boca e mantinha seu olhar atento firmado em algum ponto invisível suspenso no ar, enquanto a meninada traquina ria e se divertia, entretidos em tentativas inúteis de despertar no bobo da cidade a raiva insana que geralmente habita o temperamento dos ditos loucos. Mas Chico Margarida não os percebia, para seus ouvidos, apenas ovações clamorosas e entusiásticos aplausos.

Eu aguardava pelas tardes de sexta com a mesma ânsia eufórica de um ardoroso fã de vedete a esperar que subam o pano. Quando ele estava de bom humor, eu conseguia fazer com que cantasse quatro ou cinco músicas de Núbia Lafayette antes que eu o servisse não mais de comida requentada, mas feita especialmente para a singular ocasião. Porém, naquele dia, Chico Margarida não estava interessado em meu arroz-de-leite ou na minha galinha caipira. Inquieto, exigiu-me sem meias palavras um litro de aguardente, caso eu quisesse ouvir-lhe cantar naquela tarde. Sei que não se deve dar álcool a pessoas que sofrem de algum transtorno mental, que não é correto excitar-lhes a demência com vícios que possam agravar sua perturbação. Mas, eu não sobreviveria sem o som daquela voz que se empoleirava nos umbrais de meus ouvidos, meu anjo insano, meu rouxinol. Não insistiu muito e, mesmo assim, me rendi ao capricho de sua nova exigência, Tenho o desejo louco de beijar tua boca e nunca mais te ferir, Sinto que meu corpo treme quando você olha bem dentro de mim, cantou. Saciados meus desejos, enrolei um litro de cachaça em uma folha de jonal e entreguei nas mãos de Chico Margarida a arma que naquela mesma noite arrancar-lhe-ia a vida.

Viram-no pela última vez caminhando para o meio do mato na companhia de dois homens. A aguardente não era para ele. A cachaça, na verdade, serviria como moeda de escambo pela pretensa satisfação de suas sensuais necessidades, deixaria que os homens bebessem enquanto ele os bulinaria, sentiria mais uma vez o prazer que por toda a vida lhe disseram sórdido e repugnante, que o enlouquecera. Mataram-no. A golpes de garrafa, a vida de Chico Margarida foi tirada e sua voz, para sempre, silenciada. A culpa foi minha, minha. É bem provável que eu nunca entenda porque Deus pôs aquele rapaz diante de minha porta, jamais mereci suas canções, sou um homem mau, apodrecido pelos próprios fracassos. Matei-te, matei-te, Fada de Assu. Jamais fui digno de tua formosura, jamais ousei amar com a pureza e a coragem que, mesmo escravo de tua alienação mental, amaste, rouxinol.


“mata-me depressa
já não tenho mais motivos pra viver
chega de promessa pois o teu desejo é me ver sofrer
quanto pranto derramei por este amor mas sei que foi em vão
mata-me depressa pois já mataste a minha ilusão
mata-me depressa
arranca do meu peito um pobre coração
que por te amar demais só conheceu a dor da ingratidão
que destino ingrato o meu amar alguém que nunca me amou
mata-me depressa meu sonho de amor já se apagou
mata-me depressa
não fales a ninguém que um dia eu te amei
guarda meu segredo e não digas que a ti eu me enteguei
tento caminhar por essa estrada tão vazia e sem cor
mata-me depressa pra não te ver nos braços de outro amor”


Mata-me Depressa, música de Rossini Pinto, eternizada na voz de Núbia Lafayette.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A MUSA DE ASSU






Estes dias, fui surpreendido por algum vizinho escutando Núbia Lafayette na rua em que moro. A melancolia das letras, o pesar de sua bela voz, começaram a empurrar as pecinhas de lego que habitam minha febril cabeça e começaram a dar forma a um conto que, provavelemente, chamar-se-á Chico Margarida, e que já está próximo do desfecho.

A história se passa na Terra Natal de Núbia, no interior do Rio Grande do Norte, e orbita um personagem indigente, doente mental e homessexual, que ganha suas esmolas seduzindo as pessoas da cidade com belas e tristes canções da cantora potiguar.

Espero que a homenagem fique à altura desta fabulosa intérprete de biscoitos finos da MPB que, se viva estivesse, estaria com 73 anos de melodia e poesia soberbas.

sexta-feira, 2 de julho de 2010


Ai, moçada, a gravata vai ter que deitar-se com naftalinas no fundo da gaveta do mundo das idéias e dar passagem para uma série de outras coisas que estão vindo. DOMINGO chegou-me violentamente, e foi escrito de forma semelhantemente violenta. Quase uma carteira de cigarro consumida sem nenhuma culpa, pois não tenho dúvidas do quanto este texto valeu à pena. Gostei de escrevê-lo. Ele não teve uma razão imediata de ser, talvez seja o resultado vomitado de uma série de coisas tristes e feias que eu já tenha visto ou feito em minha vida. Não gosto de coisas feias... E a literatura é um meio maravilhoso de se extrair beleza da miséria, mesmo quando esta miséria deriva da Lei de Lynch.






DOMINGO



O primeiro chute acertou-lhe um dos calcanhares e fez com que planasse no ar como um destes heróis que povoam o imaginário juvenil. Mas ele sabia, não sou um herói. Seu curto vôo durou apenas uma fração de segundos e teve uma aterrissagem desastrosa, o queixo batendo contra o chão de pedra tosca, a cara a friccionar-se contra cascalho e areia, seguida posteriormente de um corpo desajeitado de Judas em dia de malhação. Deitado, mentiu para si mesmo e sonhou que dormia, mas uma mão acordou-lhe do infantil desejo de não estar ali, agarrou ferozmente seus cabelos ensopados de suor e medo da morte. Uma, duas, três vezes levaram sua cabeça contra o tatame da rua, ai meu deus, ai meu deus.


Estava cercado. Pagaria pelo seu malfeito da pior forma possível, jamais ansiara tanto pela presença da polícia, mas não havia polícia, só aquela fúria massificada a qual os veículos de comunicação costumam chamar justiça com as próprias mãos. Eles eram tantos. Sentia aquela enlouquecida multidão de pés a esmagarem-lhe os órgãos vitais, aos pisões e pontapés, tentou gritar para aliviar as terríveis dores, mas a asfixia e a secura na boca o impediram, deixaram-lhe com a bocarra escancarada como um peixe jogado à margem do rio, esperou pacientemente pelo milagre, que não veio. Pensou em chamar por sua avó, vovó está morta. Silenciou e procurou pensar no dia em que fora à praia com a moça que vendia Avon e que tinha uma biquíni cravejado de conchinhas e búzios, como ela é linda. Minha avó, minha avozinha. Avon, vovó, é Avon.


As mulheres berravam ao redor, aplicavam-lhe cusparadas na cara e ele já não sabia diferenciar a textura da saliva e a do sangue que brotava de mil feridas abertas pelo julgamento popular. Mata esse vagabundo, mata. Alguém trouxe um pau e acertou-lhe em cheio o meio do espinhaço quando tentou rastejar de gatinhas, em uma improvável tentativa de fuga. As vértebras gemeram e se contraíram assustadas, se não existe câimbra óssea, então, meu pai, que dor é essa? A boca, de repente leitosa, fez com que ele corresse a língua por três dentes que não estavam mais lá, sentiu parte da gengiva nua e cuspiu o sangue que havia nublado o céu de sua boca ferida. Talvez se rezasse, mas rezar não sabia. Então fez a única coisa que fora ensinado a fazer em momentos de terrível agonia. Chorou.


Um cão vira-latas, provavelmente tão assustado quanto a vítima do criminoso espetáculo, cravou os caninos em uma das orelhas do homem e pôs-se a puxá-la com vigor, rosnando com ira, copiando o gesto das pessoas que vez ou outra o alimentavam e o enxotavam, enquanto crianças riam, vai arrancar, vai arrancar a orelha dele. A mandíbula do animal, já úmida e encarnada, contraía-se mecanicamente, movida pela algazarra monstruosa que parecia não ter fim, o que para o espancado era verdadeiro, pois em seu entendimento, o violento calvário durou uma eternidade.


Cansaram. Aos poucos, o escarcéu de gente dispersou-se animado, vingados. Alguns ainda sorriam e comentavam, satisfeitos da própria proeza. O cachorro acomodou o rabo dentre as pernas traseiras e caminhou desconfiado, até refestelar-se sob uma carroça carregada de estrume, onde pode lamber suas partes como se estivesse a se presentear com um osso de açougueiro. Quem era ele, o que fez, quis saber um dos espancadores. Não sei, respondeu o outro, tentando limpar o sangue que havia espirrado em sua cara, sem conseguir ao menos disfarçar que tal pergunta não carece de qualquer resposta.