VOYEURISMO LITERÁRIO

DESNUDA CONTO: Um BLOG para quem tem curiosidade de saber como se dá a arquitetura de um conto, desde a idéia inicial à construção do enredo, cenários e personagens.
Aqui, revelarei despudoradamente minhas experiências durante a criação de um novo trabalho literário, como inpiração, autores e livros que influenciaram na edificação do projeto, curiosidades, sucessos, fracassos, futuros desafios e como meus amigos e familiares, meu trabalho e vida social influenciam no desenvolvimento de meus textos.
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sexta-feira, 9 de julho de 2010

DECIDI PELO ÓBVIO

Na escolha do título para este novo trabalho, oscilei bastante entre ROUXINOL POTIGUAR e FADA DE ASSU... Todavia, acabei decidindo-me pelo óbvio: CHICO MARGARIDA. O personagem tem uma força, uma inquietude que me assombram, eu não poderia deixar de prestar-lhe tal homenagem.
Em um micro-universo pontuado por canções chorosas, transtorno mental e fadas de James Matthew Barrie, desponta Chico Margarida, materializado pela voz de um pouco confiável narrador.
CHICO MARGARIDA



Este silêncio há de enlouquecer-me antes que a culpa arrebente minhas pontes de safena e faça com que eu finalmente chegue ao outro lado para, enfim, ser julgado. Enquanto vivo, não receberei a merecida sentença por meu crime, pois ele não figura dentre os atos hediondos desaprovados pela lei dos homens. Nesta terra-do-nunca onde obrigados somos a subtrair nossas naturezas sob a camuflagem da normalidade, neste mundo sem encanto e desprovido de beleza, eu matei uma fada. Não há mais garotos perdidos dançando ao redor de meu olhar moribundo que tanto se refestelava ao sabor da miragem sonora que vinha bater-me à porta nas tardes de sexta-feira. Quebradas foram as asas das canções. A música parou.

Ninguém sabe ao certo como ele chegou a Assu. Era natural que estranhássemos que alguém fizesse o caminho oposto ao dos retirantes, saísse do Rio de Janeiro e viesse viver no interior do Rio Grande do Norte, mesmo como mendigo. Provavelmente, de carona em carona, maltratado pela fome e pela ruindade dos homens, Francisco Clístenes chegou à nossa pequena cidade e em pouquíssimo tempo ganhou a alcunha de Chico Margarida, devido a seu comportamento caricato e afeminado, com gestos hiperbólicos que imitavam a elegância das senhoras de tempos imperiais, seu cruzar de pernas que lhe comprimia a macheza dentre as finas coxas, os cílios quase postiços, a voz mole e adocicada. Era um moço que não fazia mal a ninguém, apesar de sua incontestável perturbação mental. Vivia às gargalhadas, absorto em animadas conversas imaginárias com uma platéia masculina devotada a seus encantos, homens belos e atenciosos que povoavam seus extravagantes delírios. Assim, poupava-se de toda a torpeza do mundo no qual, inocentemente, vivia. Chico Margarida, a Fada de Assu.

Ouvia a rádio Princesa do Vale quando aquela voz angelical pela primeira vez bateu-me à porta. Paulatinamente, baixei o volume de meu velho aparelho de som, Ai quem me dera nesta hora estar no lago azul de Ipacaraí, Cantar guaranias e de amor falar em guarani, ainda tentou Ângela Maria antes que eu emudecesse seu cantar por completo. Afinal, Núbia Lafayette parecia ter transcendido a própria morte e abandonado seu sepulcro em Maricá a fim de retornar à terra natal onde, por direito do povo potiguar, ela deveria ter sido sepultada. Ergui-me trêmulo e procurei acalentar a vultuosa emoção que se agitava em meu cansado peito, eu não poderia fenecer antes de constatar com meus próprios olhos – que tão pouco viram de belo nesta vida – que o espectro da musa que embalara os reprimidos amores de minha juventude realmente havia abandonado sua alcova mortuária e se encontrava ali, diante de minha casa, a fazer o trabalho da morte. Ela veio me buscar, eu e minha ridícula presunção.

Ao ver aquele rapaz sujo, maltrapilho, de uma magreza assustadora mas que não chegava a ser feia, de cabelos degrenhados e pés descalços postos sobre o chão de terra batida, quase deixei-me abater pela inevitável decepção. Todavia, Devolvi suas cartas amorosas e as juras mentirosas com que ele me enganou, Devolvi a aliança e também seu retrato para não ver o seu sorriso no silêncio do meu quarto, arrebatou-me. A voz melodiosa e emoldurada por um rosto cuja interpretação exalava os cheiros acres que perfumam as separações, as despedidas, gás a acertar-me em cheio os olhos que, inevitavelmente, partejaram as lágrimas que antecederam meu vigoroso aplauso.

Após acomodá-lo em um banco de madeira que ficava junto ao muro de minha casa, esquentei-lhe o que havia me sobrado de mais um solitário almoço e servi-o com a mesma dedicação que sacerdotes de diversas religiões consagram a seus deuses. Ele levava pequenos bocados de comida à boca e mantinha seu olhar atento firmado em algum ponto invisível suspenso no ar, enquanto a meninada traquina ria e se divertia, entretidos em tentativas inúteis de despertar no bobo da cidade a raiva insana que geralmente habita o temperamento dos ditos loucos. Mas Chico Margarida não os percebia, para seus ouvidos, apenas ovações clamorosas e entusiásticos aplausos.

Eu aguardava pelas tardes de sexta com a mesma ânsia eufórica de um ardoroso fã de vedete a esperar que subam o pano. Quando ele estava de bom humor, eu conseguia fazer com que cantasse quatro ou cinco músicas de Núbia Lafayette antes que eu o servisse não mais de comida requentada, mas feita especialmente para a singular ocasião. Porém, naquele dia, Chico Margarida não estava interessado em meu arroz-de-leite ou na minha galinha caipira. Inquieto, exigiu-me sem meias palavras um litro de aguardente, caso eu quisesse ouvir-lhe cantar naquela tarde. Sei que não se deve dar álcool a pessoas que sofrem de algum transtorno mental, que não é correto excitar-lhes a demência com vícios que possam agravar sua perturbação. Mas, eu não sobreviveria sem o som daquela voz que se empoleirava nos umbrais de meus ouvidos, meu anjo insano, meu rouxinol. Não insistiu muito e, mesmo assim, me rendi ao capricho de sua nova exigência, Tenho o desejo louco de beijar tua boca e nunca mais te ferir, Sinto que meu corpo treme quando você olha bem dentro de mim, cantou. Saciados meus desejos, enrolei um litro de cachaça em uma folha de jonal e entreguei nas mãos de Chico Margarida a arma que naquela mesma noite arrancar-lhe-ia a vida.

Viram-no pela última vez caminhando para o meio do mato na companhia de dois homens. A aguardente não era para ele. A cachaça, na verdade, serviria como moeda de escambo pela pretensa satisfação de suas sensuais necessidades, deixaria que os homens bebessem enquanto ele os bulinaria, sentiria mais uma vez o prazer que por toda a vida lhe disseram sórdido e repugnante, que o enlouquecera. Mataram-no. A golpes de garrafa, a vida de Chico Margarida foi tirada e sua voz, para sempre, silenciada. A culpa foi minha, minha. É bem provável que eu nunca entenda porque Deus pôs aquele rapaz diante de minha porta, jamais mereci suas canções, sou um homem mau, apodrecido pelos próprios fracassos. Matei-te, matei-te, Fada de Assu. Jamais fui digno de tua formosura, jamais ousei amar com a pureza e a coragem que, mesmo escravo de tua alienação mental, amaste, rouxinol.


“mata-me depressa
já não tenho mais motivos pra viver
chega de promessa pois o teu desejo é me ver sofrer
quanto pranto derramei por este amor mas sei que foi em vão
mata-me depressa pois já mataste a minha ilusão
mata-me depressa
arranca do meu peito um pobre coração
que por te amar demais só conheceu a dor da ingratidão
que destino ingrato o meu amar alguém que nunca me amou
mata-me depressa meu sonho de amor já se apagou
mata-me depressa
não fales a ninguém que um dia eu te amei
guarda meu segredo e não digas que a ti eu me enteguei
tento caminhar por essa estrada tão vazia e sem cor
mata-me depressa pra não te ver nos braços de outro amor”


Mata-me Depressa, música de Rossini Pinto, eternizada na voz de Núbia Lafayette.

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