VOYEURISMO LITERÁRIO

DESNUDA CONTO: Um BLOG para quem tem curiosidade de saber como se dá a arquitetura de um conto, desde a idéia inicial à construção do enredo, cenários e personagens.
Aqui, revelarei despudoradamente minhas experiências durante a criação de um novo trabalho literário, como inpiração, autores e livros que influenciaram na edificação do projeto, curiosidades, sucessos, fracassos, futuros desafios e como meus amigos e familiares, meu trabalho e vida social influenciam no desenvolvimento de meus textos.
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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

OS VARAIS

Eram de mundos diferentes. Possuíam elas quereres diversos.

Fora ela educada para o casamento, não para as prendas do lar. Sabia receber convidados soberbos em um jantar pomposo, mas não fazia sequer uma vulgar idéia de como prepará-lo, tinha bom gosto para a disposição dos móveis de mogno da sala, e não sabia lustrá-los com um pano embebido em óleo de peroba, entendia de jardinagem e conhecia todas as espécies possíveis de plantas ornamentais, mesmo assim, se recusava a cravar suas unhas de porcelana na terra que sustentava sua casa de bonecas. Filhos, jamais quis tê-los, pois, seus vasos intocados, suas paredes virgens, seus tapetes imaculados, filhos, não, não, não. Ela gostava de música, vestidos e novelas, pouco tolerava os próprios pensamentos que, vez ou outra, ousavam ser tais quais os masculinos. Ora, e mais uma bobagem destas, mulheres não sabem pensar como homens, então ria de si, um destes risos nervosos, que pouco disfarça qualquer inconfessável desconforto, e voltava sua atenção para as páginas vazias de uma revista de mexericos televisivos, por que os chamam galãs, vá entender, vá entender.

Tinha o marido perfeito, que não exigia dela nada além de sua natural habilidade em apresentar-se impreterivelmente bela e disponível, não para os inconvenientes carnais do matrimônio, mas para a fotografia tão bem emoldurada naquele insípido quadro de perfumes caros e olfatos caducos, impassíveis diante dos néctares e dos cios. Um homem como aquele, imperturbável e colossal diante do pequenino universo de frivolidades e extravagantes caprichos de sua esposa, em ocasião alguma permitiria que ela realizasse um único gesto fatigante e, assim, escurecesse seu rosto cuja luz atravessava diáfana a película de pó a rejuvenescer e transformar em mármore sua pele que, aos poucos, abandonava a mocidade ainda ontem tão presente, eternizada em cada poro. Portanto, Ninoca jamais significara para sua enevoada patroa uma serviçal, uma empregada doméstica. Na verdade, a mulher que coordenava seus desgastantes serviços a encarava como um amável presente de seu marido, uma prenda, um mimo.

Ninoca constrangia-se facilmente se a observavam trabalhar. Como se atravessasse portas e paredes, vigiava seus serviços o olhar daquela mulher de tez descorada e candura oca, socada em um robe vermelho escarlate, como o interior de um caixão. Esfregue um pouco mais, menina, parece não ter vigor nestes braços roliços, nestas pernas sólidas. A distinta senhora estorvava-lhe a cansativa rotina com rogativas supérfluas, o que mais vai me pedir esta madama, que eu me detenha a polir cabeças de alfinete ao invés de capinar o mato que cresce feito o diabo no quintal, reclamava Ninoca, de beiços torcidos, olhos cismados. Mas o pior momento do dia era a lavagem de roupas, quando a mulher que a espreitava costumeiramente e garantia seu soldo no final do mês acendia um de seus pavorosos cigarros acanelados e recostava-se ao umbral da porta que dava para a área de serviço, não me diga que está com medo de se molhar, cabrocha, eu que não posso, que sou tão fraca, é só água, é só água, menina, anda, anda, que ainda temos as cortinas.

E Ninoca balançava os quartos volumosos no mesmo ritmo em que batia as peças mais pesadas contra a lavanderia, a água fria espirrava sobre sua blusa de flanela, a fazer cócegas, eriçar-lhe, que refresco, que delícia. Enquanto a umidade revelava a perfeição de seus peitos melindrosos e atrevidos, o cheiro forte de canela e tabaco parecia entorpecê-la, enquanto a patroa zelosa e atenta vampirizava sua juventude, suas carnes firmes e inquietas, que moleca vulgar, preciso de outro cigarro. O sol a refletir-se naquela pele canela, marrom-tabaco, com o cheiro forte do povo, deste repugnante aroma de gente. A diaba toda molhada e o corpo em brasa, aceso. As bochechas da bunda saltando do short jeans barato, de uma indecência galhofeira e voluptuosa. Na ponta dos pés, ela a pendurar lençóis enquanto o vento os sacudia sobre seu corpo, envolvendo-a, transformando-a em um mistério ainda maior que a libido despertada por seus xucros, e talvez selvagens, encantos.

Acha o que, a sonsa, que vou manchar suas toalhas, que roubarei algum vestido, maldita, maldita mulher, mal-empregado, casada com um homem tão bom, tão bonito, morta dentro das calças, esta vespa inútil, queixava-se Ninoca falando baixinho, a estender roupas nos varais que desenhavam um labirinto avesso a toda a nudez que habita os silêncios contemplativos. Um prendedor dentre os dentes de uma, um cigarro pendurado nos lábios da outra.

O corpo de Ninoca era bonito assim, sob o sol, molhado de água e sabão, transpirando como uma fruta fresca, ansiosa por ser mordida sobre o mato daninho que havia crescido no quintal da casa que ela sonhava sua, que homem bonito, que vespa inútil. A mulher sabia que não era natural ter aqueles pensamentos tipicamente masculinos, mas, se Ninoca havia sido um regalo que recebera das mãos de seu próprio marido, quem poderia censurá-la?
Entra, menina, vai assear-te. E deixe a porta do banheiro entreaberta, que não quero ser roubada, não me leve mais nada, Ninoca. Mais nada.

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