VOYEURISMO LITERÁRIO

DESNUDA CONTO: Um BLOG para quem tem curiosidade de saber como se dá a arquitetura de um conto, desde a idéia inicial à construção do enredo, cenários e personagens.
Aqui, revelarei despudoradamente minhas experiências durante a criação de um novo trabalho literário, como inpiração, autores e livros que influenciaram na edificação do projeto, curiosidades, sucessos, fracassos, futuros desafios e como meus amigos e familiares, meu trabalho e vida social influenciam no desenvolvimento de meus textos.
Pode entrar. O conto é seu.


sexta-feira, 2 de julho de 2010


Ai, moçada, a gravata vai ter que deitar-se com naftalinas no fundo da gaveta do mundo das idéias e dar passagem para uma série de outras coisas que estão vindo. DOMINGO chegou-me violentamente, e foi escrito de forma semelhantemente violenta. Quase uma carteira de cigarro consumida sem nenhuma culpa, pois não tenho dúvidas do quanto este texto valeu à pena. Gostei de escrevê-lo. Ele não teve uma razão imediata de ser, talvez seja o resultado vomitado de uma série de coisas tristes e feias que eu já tenha visto ou feito em minha vida. Não gosto de coisas feias... E a literatura é um meio maravilhoso de se extrair beleza da miséria, mesmo quando esta miséria deriva da Lei de Lynch.






DOMINGO



O primeiro chute acertou-lhe um dos calcanhares e fez com que planasse no ar como um destes heróis que povoam o imaginário juvenil. Mas ele sabia, não sou um herói. Seu curto vôo durou apenas uma fração de segundos e teve uma aterrissagem desastrosa, o queixo batendo contra o chão de pedra tosca, a cara a friccionar-se contra cascalho e areia, seguida posteriormente de um corpo desajeitado de Judas em dia de malhação. Deitado, mentiu para si mesmo e sonhou que dormia, mas uma mão acordou-lhe do infantil desejo de não estar ali, agarrou ferozmente seus cabelos ensopados de suor e medo da morte. Uma, duas, três vezes levaram sua cabeça contra o tatame da rua, ai meu deus, ai meu deus.


Estava cercado. Pagaria pelo seu malfeito da pior forma possível, jamais ansiara tanto pela presença da polícia, mas não havia polícia, só aquela fúria massificada a qual os veículos de comunicação costumam chamar justiça com as próprias mãos. Eles eram tantos. Sentia aquela enlouquecida multidão de pés a esmagarem-lhe os órgãos vitais, aos pisões e pontapés, tentou gritar para aliviar as terríveis dores, mas a asfixia e a secura na boca o impediram, deixaram-lhe com a bocarra escancarada como um peixe jogado à margem do rio, esperou pacientemente pelo milagre, que não veio. Pensou em chamar por sua avó, vovó está morta. Silenciou e procurou pensar no dia em que fora à praia com a moça que vendia Avon e que tinha uma biquíni cravejado de conchinhas e búzios, como ela é linda. Minha avó, minha avozinha. Avon, vovó, é Avon.


As mulheres berravam ao redor, aplicavam-lhe cusparadas na cara e ele já não sabia diferenciar a textura da saliva e a do sangue que brotava de mil feridas abertas pelo julgamento popular. Mata esse vagabundo, mata. Alguém trouxe um pau e acertou-lhe em cheio o meio do espinhaço quando tentou rastejar de gatinhas, em uma improvável tentativa de fuga. As vértebras gemeram e se contraíram assustadas, se não existe câimbra óssea, então, meu pai, que dor é essa? A boca, de repente leitosa, fez com que ele corresse a língua por três dentes que não estavam mais lá, sentiu parte da gengiva nua e cuspiu o sangue que havia nublado o céu de sua boca ferida. Talvez se rezasse, mas rezar não sabia. Então fez a única coisa que fora ensinado a fazer em momentos de terrível agonia. Chorou.


Um cão vira-latas, provavelmente tão assustado quanto a vítima do criminoso espetáculo, cravou os caninos em uma das orelhas do homem e pôs-se a puxá-la com vigor, rosnando com ira, copiando o gesto das pessoas que vez ou outra o alimentavam e o enxotavam, enquanto crianças riam, vai arrancar, vai arrancar a orelha dele. A mandíbula do animal, já úmida e encarnada, contraía-se mecanicamente, movida pela algazarra monstruosa que parecia não ter fim, o que para o espancado era verdadeiro, pois em seu entendimento, o violento calvário durou uma eternidade.


Cansaram. Aos poucos, o escarcéu de gente dispersou-se animado, vingados. Alguns ainda sorriam e comentavam, satisfeitos da própria proeza. O cachorro acomodou o rabo dentre as pernas traseiras e caminhou desconfiado, até refestelar-se sob uma carroça carregada de estrume, onde pode lamber suas partes como se estivesse a se presentear com um osso de açougueiro. Quem era ele, o que fez, quis saber um dos espancadores. Não sei, respondeu o outro, tentando limpar o sangue que havia espirrado em sua cara, sem conseguir ao menos disfarçar que tal pergunta não carece de qualquer resposta.

Um comentário:

  1. Um tanto quanto bizarro...mas infelizmente real. Escrito dessa forma ficou mais visível do que "ao vivo"...pois mostrou todas as dores, lástimas e lembranças, onde até a morte teve dó do miserável.

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