VOYEURISMO LITERÁRIO

DESNUDA CONTO: Um BLOG para quem tem curiosidade de saber como se dá a arquitetura de um conto, desde a idéia inicial à construção do enredo, cenários e personagens.
Aqui, revelarei despudoradamente minhas experiências durante a criação de um novo trabalho literário, como inpiração, autores e livros que influenciaram na edificação do projeto, curiosidades, sucessos, fracassos, futuros desafios e como meus amigos e familiares, meu trabalho e vida social influenciam no desenvolvimento de meus textos.
Pode entrar. O conto é seu.


terça-feira, 3 de agosto de 2010

A VENDEDORA DE ARRANJOS

Tinha o filho da Celma Roleira, uma moça de seus vinte e poucos anos que largara o marido evangélico a fim de fazer ponto em frente ao Parque da Paz, local de descanso eterno de sua finada sogra católica que tanto debulhara rosários para vê-la morta. O menino da Lindinete também era mandado para lá quando sua mãe precisava trabalhar no turno da madrugada na usina de asfalto, aspirando os gases que um dia a matariam antes que ela sofresse o desgosto de ver o filho transformado em um homem pior que o pai. A Fátima deixava sua pequena ali para que assim pudesse limpar do chão as cusparadas do Cabaré Recanto das Garotinhas, sua filha mal a reconhecia, não a chamava mamãe, mas Fati. Também tinham os gêmeos, filhos da Robecilda, que sequer pareciam irmãos tal a falta de semelhança entre as duas crianças rejeitadas pelo homem que duvidava ser pai de qualquer uma delas, imagine das duas. Já o neto do Lobato Bicheiro tinha certas regalias, sendo que a mais importante delas era o fato de comer melhor que as outras crianças e de só beber leite de caixa. Os sobrinhos da Natércia, o filho ilegítimo do Zeca Ramos, as três meninas do Luiz Pintor e da Manu Sacoleira, o enteado do Paulo Babau, o filho adotivo da Maria Leirte, as crias da Nádia, os entojos da Veralda. Todos, vez ou outra – e alguns a semana inteira – eram deixados aos cuidados dela, que ficava com os filhos de suas vizinhas em troca de algumas dezenas de reais por mês.

Às vezes preferia receitar alguns tóxicos inorgânicos como arsênio, antimônio, chumbo, cobre, ferro e fósforo, ou então indicava chá de losna, alecrim, zabumba e de várias outras ervas amargas. Se a moça estivesse grávida de até quinze semanas, ela preferia fazer com uma cureta a raspagem da placenta e das membranas que envolvem o embrião, cercando-se de todos os cuidados para não perfurar a parede do útero das jovens mulheres que a procuravam. E, para aquelas que já estavam pra lá da vigésima semana de gestação, ela possuía um método que consistia em anestesiar um ponto entre o umbigo e a vulva, ultrapassando a parede do abdome, do útero e do âmnio. Com a mesma seringa utilizada para diminuir a sensibilidade, ela aspirava o fluído da bolsa d’água, substituindo-o por uma solução salina que tinha como efeito as contrações que expulsavam o feto. Todas, vez ou outra – e algumas mais de uma vez por ano – procuravam pelos cuidados dela, que abortava os filhos de suas vizinhas em troca de algumas dezenas de reais.

Dona Josefa fora enfermeira do Instituto Dr. José Frota por mais de três décadas dedicadas ao mazelados, amputados e enfermos. Jamais casara ou tivera filhos, jamais dividira suas mãos – que por muito pouco não curavam miraculosamente – com o gozo de um possível marido ou com os egoísmos pueris de um caçula. Eram tantas as feridas, cânceres, viroses. E também era tanta a morte. Não havia espaço para o amor. O amor acabaria por destruir sua inclinação natural, a desviaria de seu intento em cuidar daqueles que ninguém mais no mundo queria sarar as feridas e cicatrizar a alma deteriorada pela dor e pelo abandono. Assim, o álcool acabou por tornar-se uma opção óbvia e indispensável à manutenção de sua renúncia, seu martírio. Mas o vinho parecia sem vigor, os licores não lhe saciavam a sede, então vieram o uísque, a vodca, a cachaça, a garrafa de vinagre, o vidro de perfume. Dona Josefa perdera seus doentes, seu hospital, seu emprego, seus periquitos, seu jardim e sua casa, fora morar em um barraco na Favela Maravilha onde por muito tempo passara por toda sorte de privação, estava partida ao meio, quebrada.

Lindinete foi a primeira que propôs o negócio. Se a senhora não bebesse, eu deixava meu Lalo aqui pra mim poder trabalhar um pouco mais, daí eu teria como lhe dar um agrado, a senhora já foi enfermeira, deve saber de cuidar de criança, mas esta bebida, ai, não, eu não teria coragem. Foi o suficiente para que Dona Josefa largasse o álcool e passasse a cuidar das crianças de algumas mães solteiras de sua rua, mulheres que trabalhavam em bairros afastados como domésticas ou operárias. Não acredito que aquela cabra velha largou a manguaça assim do nada, ainda vai matar o filho de alguma infeliz um dia destes, ainda vai por fogo naquele barraco. Mas a tragédia não veio e o vício estranhamente jamais voltara a agarrar-lhe à força pelo gorgomilo durante o tempo em que cuidara das crianças. Tornara-se então uma espécie de avó zelosa para os filhos daquelas jovens mães que também haviam sido criadas na casa dos outros, no meio da rua, sob a cinzenta proteção dos viadutos. Dona Josefa tinha pressa, precisava insuflar de conforto e amor a vida daquelas crianças que logo estariam jogadas por estas esquinas que mais parecem pústulas venéreas, caídas ao chão, derrubadas pelo fogo da arma empunhada pela mão do menino com o qual um dia soltaram arraias, despidas de dignidade, desprovidas de atenção, esquecidas. Era mister amar aqueles pequenos antes que o mundo os desfigurasse com seu metal implacável. Dona Josefa tinha pressa em acarinhá-los, enchê-los de beijos e de mimos, pois ela sabia que, logo ali na frente, esta traição chamada destino – que só cumpre sua sina na história dos miseráveis – espreitava ansiosa.

Veralda foi a primeira que propôs o negócio. Se a senhora não bebesse, eu ia pedir pra tirar esse menino que eu tô esperando, daí eu não ia precisar sair do meu trabalho e teria como lhe dar um agrado, a senhora já foi enfermeira, deve de saber de tirar criança, mas esta bebida, ai não, eu não teria coragem. Foi o suficiente para que Dona Josefa largasse o álcool e passasse a realizar abortos em algumas mães solteiras da rua, mulheres que trabalhavam em bairros afastados como domésticas ou operárias. Não acredito que aquela cabra velha largou a manguaça assim do nada, ainda vai matar alguma infeliz um dia desses, ainda vai tremer a cureta e encher de sangue aquele barraco. Mas a tragédia não veio e o vício estranhamente jamais voltara a agarrar-lhe à força pelo gorgomilo durante o tempo em que cuidara dos abortos. Tornara-se então uma espécie de avó zelosa para os filhos abortados daquelas jovens mães que também haviam sido criadas na casa dos outros, no meio da rua, sob a cinzenta proteção dos viadutos. Dona Josefa tinha pressa, precisava evitar que viessem ao mundo aquelas crianças que logo estariam jogadas por estas esquinas que mais parecem pústulas venéreas, caídas ao chão, derrubadas pelo fogo da arma empunhada pela mão do menino com o qual um dia soltariam arraias, despidas de dignidade, desprovidas de atenção, esquecidas. Era mister salvar aqueles pequenos antes que o mundo os desfigurasse com seu metal implacável. Dona Josefa tinha pressa em libertá-los, livrá-los das agressões e dos descasos, pois ela sabia que, logo ali na frente, esta traição chamada destino – que só cumpre sua sina na história dos miseráveis – espreitava ansiosa.

Não sei bem quantas crianças vivas ou mortas Dona Josefa acreditava ter salvado das aflições do mundo. E, se não me falha a memória, pouco tempo antes que a morte a levasse embora da Maravilha, ela voltou a beber.

Um comentário:

  1. Olá! Adorei seu Blog, axei MTO interessante! Vou te seguir! Eu criei o meu a um mês e alguns dias, se quiser dar uma olhada fique a vontade!
    Bjx

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